Título: Metas só para o dragão da inflação
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Todo país convive com inflação. Pode ser maior ou menor, mas sempre existe. É como um eterno bicho de estimação. E cabe o nome, pois sempre há gente a estimá-la.

O bicho que usualmente a representa é o dragão. Cospe fogo, causa queimaduras e assusta a economia, mas é de uma espécie que não mata. Eventuais danos dependem do seu peso e do tamanho a este associado. Um dragãozinho leve, digamos, perto de 2% ao ano, não é problema.

Este surge quando engorda a ponto de incomodar. Aí afeta a economia a que pertence, enfraquecendo-a ao fazê-la gastar tempo e energias a medi-lo, desviando-a, assim, de afazeres produtivos.

Por estas bandas o dragão já chegou a crescer 2% ao dia (!), nas mãos de um tratador chamado Sarney. Tenho à minha frente um gráfico da medida mensal, em linha, desde que ele assumiu o cargo até os dias atuais. O próprio gráfico tem um quê de dragão. Vista da esquerda para a direita, a linha mostra-o com patas e pernas delineadas por fracassadas dietas de tratamento em que predominaram preços congelados, e no pico do descontrole está a cabeça. Depois vem o dorso em corcoveio e uma cauda entrecortada que se afina até a ponta atual.

Moderna e internacionalmente, o tratamento em moda é o de metas de inflação. Como ontem em Brasília, fixa-se a meta de peso para um ano e o Banco Central (BC) recebe a tarefa de alcançá-la, com a única receita ou arma de que dispõe, a que dispara a taxa básica de juros da economia, chamada de instrumento da política antiinflacionária.

Isso lembra tiro ao alvo, e é por aí mesmo que a coisa anda. Ou desanda, pois o nosso BC não é um atirador de elite, ainda que se vanglorie de sê-lo. Ademais, a tarefa não é simples.

A taxa de juros funciona como um projétil que injeta remédio, nesse caso sem que o alvo perca consciência, mas sempre para controlar suas energias. E mais: para atingir o dragão o BC atira na economia. Se a medida do dragão estiver acima da meta, a dose é maior, para que a economia reduza suas forças e o alimente menos. Se estiver abaixo da meta, como agora, a dose é reduzida.

É assim que a história é contada ao público, sem atentar para suas muitas complicações. Ora, é muito simplista imaginar que num país como o Brasil a taxa de juros tenha toda a força que o BC lhe atribui, a ponto de se considerar o grande vitorioso pela queda dos índices de preços.

Na sua complexidade, a inflação brasileira é um dragão globalizado, muito sujeito à influência da taxa de câmbio, de preços de commodities e de preços chineses. Estes, altamente competitivos, seguram preços em setores como o têxtil e o de calçados.

De sua parte, o BC demonstra maior eficácia quando a inflação sobe, pois aí aumenta os juros e, mesmo sem precisão, isso gera cautela nos mercados onde se determinam os preços. Quando a inflação cai, como agora, o BC tem enorme dificuldade de fixar a taxa de juros, atrasando-se em reduzi-la e prostrando a economia mais que o justificável pelo que mede o dragão, hoje e na futurologia do mercado financeiro.

De sua parte, o governo federal em nada colabora para evitar que o BC recorra a overdoses. Ao contrário, sempre ampliando sua carga tributária, expandindo gastos correntes e investindo pouco, é inflacionário. Alimenta mais o dragão com sua demanda e prejudica a expansão da oferta de bens e serviços. Esta cresceria mais se os investimentos privados não fossem inibidos por essa carga, e também porque o governo não dá à economia uma adequada infra-estrutura (como estradas e portos).

Tudo isso ponderado, a maior responsável pela queda da inflação desde 2003 foi a fortíssima melhoria das contas externas do País, que levou à queda da taxa de câmbio em reais por dólar. Essa taxa é uma âncora a segurar direta e indiretamente muitos preços da economia.

Quanto à política de metas, desde setembro de 2005, quando iniciou o atual ciclo de redução dos juros, o BC está a ajustar timidamente a taxa de juros a uma inflação que caiu principalmente por essa outra razão. E não venha o BC dizer que esse ainda é um efeito defasado do ciclo anterior, de subida, ajustando à sua conveniência a medida do tempo em que essa defasagem se desdobra.

Nesse contexto, a notícia da briga entre o BC e o Ministério da Fazenda (MF) pelo valor da meta de inflação anual em 2009 (4% ante 4,5%, respectivamente) reflete mais uma vez a enorme dificuldade de nossas autoridades públicas em resolver problemas, sempre fugindo de conflitos e de decisões claras e sustentáveis. O resultado foi ambíguo: como queria o MF, a meta será de 4,5%, mas o BC vai tentar a de 4%, o que lhe dará mais razões para sua parcimônia na queda dos juros.

Quanto à meta em si, com a com a inflação rodando próxima de 3% ao ano, e se o câmbio continuar no seu atual caminho, não será preciso muito esforço para alcançar uma ou outra meta diante dessa outra forma de ajuda externa, a do câmbio que sustenta a política monetária.

Já na sua patologia e nos remédios necessários, a inflação permanecerá sujeita a agravamentos, em particular se o câmbio mudar de direção. Para trazê-la para valores ainda mais baixos, e assim abrir espaço para enfrentar ventos desfavoráveis que venham de fora ou de dentro do País, seria necessário que o governo federal fizesse a sua parte, revertendo o crescimento da carga tributária e dos gastos de custeio.

Portanto, sem um tratador capaz de submeter o elefante governamental a uma rigorosa dieta noutra política de metas, as fiscais, nosso dragão continuará como ameaça latente, a taxa de juros alta, a economia sofrendo com ela e o BC comemorando até o que não resulta de sua ação.