Título: A soberba também cega
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/06/2007, Notas & Informações, p. A3

O comportamento do presidente do Senado, Renan Calheiros, é o exemplo do dia da perene atualidade do que diziam os antigos gregos - os deuses cegam com a soberba aqueles a quem querem destruir. Se assim não fosse, a própria experiência já teria feito o político alagoano abrir os olhos para o que está à vista de todos: os seus dias no cargo que lhe dá o comando do Congresso Nacional e o terceiro lugar na linha sucessória do presidente da República estão contados. Só mesmo a crueldade dos deuses pode explicar que ele ainda não tenha enxergado o acordo tácito dos seus pares para preservar-lhe o mandato em troca de seu afastamento - temporário, de início, para salvar as aparências de um trajeto sem volta -, afrouxando-se a apuração das suspeitas não dissipadas de que usou dinheiro de uma empreiteira para pagar despesas extraconjugais, com a intermediação do principal lobista da empresa.

O patrimônio político do senador - na Casa, no governo e na opinião pública - se esfarela irreversivelmente. Passados 33 dias desde que tudo começou, com a reportagem incriminadora da revista Veja, Calheiros não ganhou uma única batalha na sua luta para se safar do imbróglio. Certo de que a história teria vida curta, e para fazer crer que nada temia porque nada devia, não se pôs no caminho da representação do PSOL ao Conselho de Ética para averiguar possível quebra de decoro de sua parte. Ali, tinha a faca e o queijo na mão: um presidente petista, portanto aliado, ainda por cima senador sem votos próprios, Sibá Machado, escolhido a dedo para sepultar a denúncia, o octogenário companheiro de PMDB Epitácio Cafeteira, e uma perícia concebida para ser pro forma nos papéis que comprovariam ter ele, como pecuarista, recursos próprios e lícitos para pagar do próprio bolso os seus compromissos com a ex-amante.

Se tudo que pode dar errado dá, foi o que ocorreu, em seqüência, para infortúnio de Calheiros. Mesmo a superficial investigação da Polícia Federal nas suas alegadas vendas de gado destampou um rol de inconsistências que só confirmaram a devastadora reportagem do Jornal Nacional, na semana anterior, mostrando que cheques e recibos de vendas de bois, entregues ao Conselho, estavam em nome de empresas de fachada. Depois, sob pressão de mais de mil e-mails de advertência, que disse ter recebido, Sibá se afastou do script que deveria cumprir. Adiou a votação do parecer, pelo arquivamento do caso, do então já licenciado Cafeteira, quando o clima no colegiado ainda era favorável ao abafa. Indiferente à tropa de choque de Renan, deu por instaurado, sem depender de outra votação, o processo pedido pelo PSOL. Por fim, anunciou que faria votar ontem o relatório Cafeteira, ciente de que seria rejeitado. Encostado à parede, renunciou.

Ontem, pela primeira vez, o presidente do Senado investiu contra o Conselho, acusando-o de ¿fingir que está cumprindo o seu papel¿. Conhecido por seu talento para fazer amigos, ele não se dá conta de que passou a fazer, se não inimigos, um adversário depois do outro. A visão embaçada já o fizera, na véspera, se fazer de vítima de um ¿esquadrão da morte moral¿ e da ¿imprensa opressiva¿, no desesperado bilhete com pedido de socorro que entregou ao amigo tucano Artur Virgílio. A teoria conspiratória simplesmente não cola. A imprensa está indo aos fatos - e estes, por sua natureza, são absolutamente inteligíveis para o menos politizado dos brasileiros. Figurões, amantes, filhos fora do casamento, dinheiro vivo, lobistas, bois voadores, notas frias, tudo isso ele já viu nas novelas. Outra manifestação de cegueira foi a suposição do senador de que nada como um escândalo alheio para desviar de si o foco implacável que o fere.

Na realidade, o envolvimento de outro senador peemedebista, Joaquim Roriz, num negócio cabeludo de R$ 2 milhões em dinheiro vivo só eleva o clamor da sociedade. Outro engano é ainda apostar no fator tempo - o adiamento da decisão do Conselho de Ética para depois do recesso de julho, a fim de esfriar as cobranças do público pela apuração da verdade. Em suma, é mais fácil Renan Calheiros se livrar da própria sombra do que da condição de pato manco que a sua insistência em se aferrar ao poder parece ter tornado incurável.