Título: Democracia e integração econômica
Autor: Ulhoa Coelho, Fábio
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Para a História, o fracasso da Rodada Doha é nada. Se, como tudo indica, vier a ocorrer, não passará de pequeno revés na irrefreável integração do planeta num só mercado. A globalização (eliminação das fronteiras nacionais como referência do comércio) não se detém, porque o capitalismo tem insaciável sede de mercado. Regime econômico de crises periódicas e injustiças permanentes, ele depende do constante desbravar de novos pólos de consumo.

Após a derrocada dos modelos de planificação centralizada, marcada pela queda do Muro de Berlim, em 1989, não sobreviveu nenhuma alternativa, ainda que teórica, à organização da economia com base na liberdade de iniciativa. Como essa liberdade está sempre acompanhada de alguma anarquia (produz-se o que não é preciso e se deixa de produzir o que é), o modelo só funciona se houver constante expansão dos mercados.

Uma das chaves da prosperidade no capitalismo é a criatividade na criação de mercados. O fordismo, num de seus aspectos menos conhecidos, mas de grande importância estratégica para o fortalecimento da economia dos EUA, mostrou que pagar bem ao operário fazia dele também um consumidor. Engenhosa maneira de criar mercado.

Durante a 1ª Guerra, a economia norte-americana cresceu vendendo onde as empresas européias momentaneamente estavam sem condições de operar (isto é, na própria Europa e em suas colônias). Finda a conflagração, as empresas européias aos poucos se reorganizaram e retomaram esses espaços. Os EUA, então, enfrentaram uma crise de superprodução, que está na origem da quebra da Bolsa de Nova York em 1929.

A 2ª Guerra Mundial foi a última disputa bélica por mercados coloniais. Uma das conquistas do vencedor, os EUA, foi o compromisso, em Bretton Woods, de que os Aliados eliminariam de vez o que ainda restava dos entraves dos antigos pactos coloniais. O objetivo, claro, era aumentar os mercados.

Sem mais colônias para escoamento de seus produtos, a Europa encontrou na integração econômica, em meados do século passado, a via de aumento dos mercados. Desde então vem implantando um portentoso projeto de eliminação das fronteiras nacionais que sinaliza ao resto do mundo como será o futuro da economia.

Por paradoxal que soe, a Rodada Doha deve fracassar porque a economia mundial está num momento bom. Quando o ciclo de prosperidade se esgotar e as negras nuvens da próxima crise de superprodução surgirem no horizonte, a saída será o aprofundamento da integração econômica global. EUA e União Européia, então, estarão fortemente interessados em reduzir seus astronômicos subsídios agrícolas em troca do acesso ao mercado brasileiro e de outros países em desenvolvimento.

Pois bem, se a globalização é inevitável, interessa apenas calcular o momento certo para negociar cada etapa do aprofundamento da integração, para que seja a mais frutífera para o Brasil.

Este é o contexto para discutir a importância da cláusula democrática nos processos de integração. Por meio dela se estabelece que somente podem participar da integração econômica, e dela se beneficiar, Estados democráticos. De início, vale o registro de que nem todos os processos de integração contemplam essa cláusula. Nos menos ambiciosos, que se contentam com a formação de meras zonas de livre comércio, não preocupa a inexistência de democracia em parte do bloco. Já nos mais ambiciosos, que miram a constituição de mercados comuns ou mesmo comunidades econômicas, a cláusula tem sido prestigiada.

Não é à toa que o aprofundamento da integração econômica está associado à defesa da democracia. Não se trata apenas de uma ajuda da economia à causa democrática. Na verdade, a plena liberdade de iniciativa se alimenta de outras liberdades, em especial a de imprensa.

Ilustra bem essa dependência a questão dos direitos dos consumidores. Onde é assegurada a plena liberdade de imprensa, graves desrespeitos a esses direitos são amplamente divulgados, com repercussão evidentemente negativa para o empresário envolvido - e em alguns casos até mesmo para todo um segmento do empresariado. Empresas que operam em país sem liberdade de imprensa têm mais condições, por meio de pressões políticas, de impedir ou maquiar a notícia de um acidente de consumo, por exemplo.

Gozam, assim, de uma inconcebível vantagem competitiva relativamente aos que operam em país democrático, tornando difícil o aprofundamento da integração econômica além do nível da zona de livre comércio. O cerceamento da liberdade de expressão pode gerar outras vantagens competitivas indevidas, que impedem a formação de um mercado comum, porque reduz ou suprime o controle social sobre os governantes. Quando a imprensa não é livre, tendem a ser maiores a corrupção, a sonegação de impostos, o direcionamento de licitações, a manipulação da autoridade de defesa da concorrência, a falta de independência dos juízes e outras distorções prejudiciais ao modelo de liberdade de iniciativa. Nas ditaduras o ambiente econômico é bem diverso do das democracias.

Então, é correta a hesitação do Congresso Nacional brasileiro em aprovar o ingresso da Venezuela no Mercosul. Enquanto não ficar claro se ela tem realmente condições de cumprir a cláusula democrática do bloco, convém não precipitar qualquer decisão. Nenhum mercado comum pode ser consistentemente construído se não houver a completa eliminação das vantagens competitivas derivadas dos marcos institucionais dos países em integração. É o caso, em outros termos, de calcular se a integração econômica com a Venezuela não deveria aguardar momento institucionalmente mais propício.

A globalização nivela pelo alto. A expansão da democracia para onde houver mercados totalmente integrados é só uma das implicações positivas desse complexo processo histórico.