Título: Eles não pegam a fila do caixa
Autor: Sardenberg, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/07/2007, Economia, p. B2

Você já tentou fazer um saque, em dinheiro, de um cheque de R$ 50 mil em um banco qualquer? Mesmo se o cheque for de você para você mesmo - de modo que esteja retirando dinheiro de sua própria conta - não vai ser fácil. Se for de outra pessoa, então, será quase impossível. O caixa sente-se inseguro diante dessa operação. Vai chamar o gerente, este vai sugerir que você deposite ou faça uma transferência eletrônica. Vai pedir tempo para juntar e contar o dinheiro, enfim, vai torrar sua paciência para ver se você desiste. E, se fizer, vai comunicar aos superiores e ao Banco Central (BC).

Mesmo no caso de transferência eletrônica não é simples. Você resolve raspar suas poupanças e aplicar na Bolsa. Assim, vai transferir R$ 100 mil de sua conta para a conta da corretora, em outro banco. Não conseguirá fazer pela internet, porque excede os valores habituais. Vai ter de mandar um fax ao gerente, se ele o conhecer muito bem, ou terá de ir pessoalmente à agência preencher alguns documentos para explicar direitinho o que está fazendo com o dinheiro - o seu dinheiro. E a informação vai para o BC e para o tal Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Agora imagine o que aconteceria se você chegasse a um banco com um cheque de R$ 2,2 milhões, emitido por outra pessoa, de outro banco, a favor de terceira pessoa e dissesse que quer receber tudo aquilo em dinheiro vivo?

Talvez o gerente não chamasse a polícia, mas, certamente, nem colocaria as mãos no cheque.

Pois o senador Joaquim Roriz conseguiu. Vamos supor que a partilha dos R$ 2,2 milhões tenha sido um negócio privado e legal. Mas, não fosse ele senador e ex-governador de Brasília, não teria conseguido descontar em dinheiro vivo, no Banco Regional de Brasília (BRB), pertencente ao governo do Distrito Federal (DF), um checão do Banco do Brasil, emitido por terceira pessoa, em favor de uma quarta, o empresário Nenê Constantino.

Roriz já mandou no BRB e pode vir a mandar de novo. Emitente e favorecido no checão tiveram, têm e terão negócios com o governo do DF.

'E daí?', diz Roriz na sua defesa. Foi tudo um negócio privado, entre amigos do peito.

Renan Calheiros diz coisa semelhante. Ele não vê problema algum em ter como agente financeiro e locador de ninhos de amor, digamos assim, o diretor de uma empreiteira para cujas obras insere verbas no Orçamento da União. Também são negócios privados, entre amigos do peito.

Na semana passada, um competente estudo da Transparência Brasil mostrou que o Parlamento brasileiro - Senado e Câmara dos Deputados - é o mais caro do mundo e o que mais pesa no bolso do contribuinte. A conta inclui vencimentos pagos diretamente ao parlamentar e todo o gasto com prédios, estruturas, custeio e pessoal. Pode apostar: tem funcionário sobrando e os salários são sempre mais do que bons.

O que isso tem que ver com os negócios privados dos senadores?

É o mesmo padrão da política nacional: obter vantagens do setor público. Pode ser uma vantagem direta (como um bom emprego num gabinete parlamentar), indireta (como arrumar dinheiro para obras de empreiteiras amigas) ou uma facilidade especial, como essas de sacar R$ 2,2 milhões da conta dos outros, vender boi de segunda a preço de premium e ter como agente o diretor de uma empreiteira fornecedora do governo.

Já estou ouvindo as críticas: é injusto colocar no mesmo saco funcionários concursados e políticos que fazem negócios especiais. O.k., aceito. Desculpa aí.

Mas o ponto é o seguinte: os políticos e as elites dirigentes criaram e administram esse sistema, cujo objetivo é tirar dinheiro, vantagens, benefícios e empregos do Estado.

Não se trata de roubar descaradamente. Tem isso também. Aliás, já teve muito mais. É preciso reconhecer que houve avanços notáveis no controle dos gastos públicos.

É mais que isso, porém. Uma estrutura gigantesca e gastadora, como a dos parlamentos brasileiros - incluindo os federais, estaduais e municipais -, não sai do nada. Vem de uma cultura que considera legítimo - e desejável - abrigar-se no Estado.

Como justificar, por exemplo, que vereadores de pequenas cidades, que se reúnem duas vezes por semana, à noite, recebam os melhores salários da região? E que remunerem igualmente bem os seus funcionários, não raro familiares ou amigos do peito?

Nesse ambiente, quem se anima a tentar um negócio privado? O caminho mais fácil passa pelo Estado. Quer o objetivo seja criminoso, quer seja legal e bem-intencionado, trata-se de expandir o Estado, ampliar as oportunidades de obter alguma coisa do setor público.

Há uma boa ideologia de base: o Estado trabalha para a população, fornece os indispensáveis serviços públicos. Isso não apenas justifica a ampliação dos órgãos, empresas e bancos públicos (e, lógico, de seu pessoal), como justifica a ocupação do Estado pelos correligionários.

Do mesmo modo que as elites, especialmente das regiões mais pobres, acham a coisa mais natural do mundo fazer carreira e/ou fortuna dentro do Estado, também os militantes do PT e os sindicalistas da CUT e da Força Sindical acham natural ocupar tantos postos públicos quantos forem necessários.

Assim como se encontram famílias inteiras (incluindo seus agregados) abrigadas no Estado - como no caso dos Calheiros e dos Sarney -, há sindicalistas, como Delúbio, que têm uma carreira toda feita à sombra do Estado, quer no sindicato, que vive de dinheiro recolhido pelo governo, quer nos governos.

Acrescente aí a elite empresarial que acha a coisa mais natural do mundo receber favores, isenções e dinheiro do governo - afinal, estão criando empregos! - e o círculo se fechou.

Está feita a aliança. Todos querem mais Estado, por dinheiro, facilidades, emprego ou subsídios ao capital local.

Para quem está fora, a lei e os impostos. E a fila do caixa.