Título: Entendimento tardio
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/07/2007, Notas & Informações, p. A3

No discurso em que anunciou a liberação de R$ 3,8 bilhões em recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para obras de urbanização e saneamento no Rio de Janeiro, particularmente em favelas, o presidente Lula pode ter sido excessivamente complacente com a operação militar aberta, em espaço urbano, que tanto eliminou criminosos quanto vítimas inocentes, mas sem dúvida foi ao cerne da questão ao demonstrar que a ação do Estado, nesses locais, deve ir muito além do campo da segurança pública, para investir em saneamento, educação e demais serviços essenciais.

Dá até para entender bem, apesar da impropriedade do termo, o sentido da expressão presidencial, quando afirmou que seu governo precisa ¿competir¿ com o crime organizado: ¿Se o Estado não cumprir com seu papel de dar condições para o povo, o narcotráfico dá, o crime organizado dá. Então, nós queremos competir com o crime organizado, na certeza de que vamos derrotá-lo, para que a gente consiga levar benefícios aos lugares mais pobres do Brasil.¿ Claro está que cabe ao Estado dar rigoroso combate ao crime organizado e não competir com ele - inclusive para que seus tentáculos não alcancem a própria administração.

Certamente a ausência do Estado tem aumentado e consolidado, nas favelas do Rio - e não apenas nestas -, o poder das organizações criminosas ligadas ao narcotráfico, que buscam ¿suprir¿ as comunidades dos serviços e da ¿autoridade¿ governamental que falta, mesmo que esta tutela se imponha pela intimidação permanente, que chega a estabelecer toques de recolher, fechamento de comércio e escolas e tudo o mais que transforma pacatos cidadãos em reféns - quando não em cúmplices - de bandidos. Está cheio de razão Lula quando afirma que a ausência do Estado vem de longe. Falta-lhe, porém, autoridade para criticar governos anteriores por isso, considerando-se que só resolveu acabar com essa ausência quatro anos e meio depois de assumir o comando do Estado. O que fez o governo Lula esse tempo todo para ajudar a resolver o crônico problema? Deixe-se de lado, pela obviedade, o consolo do ¿antes tarde do que nunca¿, posto que, nesse caso, o entendimento tardio tem custo elevado.

Quando o presidente apresentou com sucesso, no Canecão, o seu show ¿origens¿, no qual descreveu com crueza - sem reprimir-se nem ante o risco da narrativa escatológica - sua experiência pessoal de convivência com a falta de saneamento básico, sem dúvida deu um toque de autenticidade a sua motivação emocional para tratar da necessidade urgente de serviços públicos essenciais para as comunidades. Essa percepção pessoal reforça, no entanto, a estranheza do entendimento tardio: ninguém melhor do que o presidente Lula para entender o sofrimento de milhões de brasileiros que moram em péssimas condições de salubridade e higiene, muito piores do que aquelas em que ele viveu até o primeiro emprego numa fábrica. Por que, então, em seus quatro anos e meio de governo não foi feito praticamente nada a respeito?

Que não se faça objeção ao fato de o presidente ter demorado para entender que ¿o câmbio flutuante flutua¿ ou que a valorização da nossa moeda tem algo que ver com a desvalorização do dólar em relação a todas as moedas do mundo, decorrente do grande déficit fiscal norte-americano. O que merece críticas, em primeiro lugar, é o fato de o presidente achar que, passando a entender de determinadas questões - sejam sociológicas na favela ou macroeconômicas no câmbio -, tem a perfeita explicação para elas. Será mesmo que, pelo fato de os Estados Unidos serem muito grandes, ¿ninguém tem coragem de falar¿ de seu enorme déficit fiscal que desvaloriza o dólar? Julga-se nosso presidente o único a ter essa ¿coragem¿? Em segundo lugar, é mais criticável ainda o fato de o presidente julgar que seus veementes diagnósticos, por si, resultarão em soluções. É o viés do líder sindical para quem a denúncia é o instrumento do acordo. Só que - não há como deixar de repetir - não se governa apenas com discursos. E a distância destes para a ação concreta de governo tem custo proporcional ao do entendimento tardio.