Título: O descarte das aparências
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/07/2007, Notas & Informações, p. A3

A indecência das manobras do político alagoano Renan Calheiros para se manter afixado na cadeira de presidente do Senado lembra de alguma forma a fábula do lobo e do cordeiro. Tendo fracassado nas tentativas de demonstrar que este conspurcara a água que ele bebia, às tantas, impaciente, a fera descartou as aparências. ¿Se não foste tu, foi o teu pai ou o teu avô¿, sentenciou, pondo fim ao lero-lero, antes de sujeitar a vítima indefesa à razão do mais forte. Um mês passou Calheiros tentando se livrar de um processo no Conselho de Ética por ofensa ao decoro parlamentar sem perder de todo a face.

Começou por encaminhar diretamente ao Conselho a representação do PSOL contra ele, dispensando a consulta aos seis integrantes da Mesa, quatro dos quais, por sinal, seus aliados. É possível que soubesse que a decisão viciada poderia servir adiante para invalidar o trabalho do colegiado. É provável que a sua intenção fosse a de representar o papel de quem não deve não teme, certo de que o presidente do Conselho, o senador sem votos Sibá Machado, mandaria arquivar a representação. Mas o suplente da ministra Marina Silva deu seguimento ao pedido, desencadeando uma reação em cadeia cada vez mais ameaçadora para Calheiros.

Em lugar de Sibá, levado a renunciar, o presidente do Senado instalou o pau-mandado Leomar Quintanilha, cuja folha corrida ostenta uma incompatibilidade congênita com o cargo que lhe tocou ocupar - para não dizer com o próprio mandato senatorial. Por seu intermédio, enfim, Calheiros se pôs na pele do lobo de La Fontaine, fazendo valer a lei do mais forte. Quintanilha, também sem ouvir os seus pares, devolveu o processo à Mesa. A sua única concessão às aparências foi pedir pareceres ao consultor jurídico e ao advogado-geral do Senado, ambos subordinados a Calheiros. Segundo eles, o caso não poderia ter chegado ao Conselho por um ¿despacho monocrático¿ e só à Mesa caberia pedir a perícia que só fez piorar as coisas para ele.

É um escárnio. A volta à estaca zero só seria admissível se qualquer dos vícios formais invocados para dar fumaças de legalidade ao bote lupino de Calheiros tivesse tolhido o seu direito de defesa. E por que os diligentes juristas do Senado não alertaram a Mesa a tempo para referendar a (farsesca) iniciativa do seu presidente? E ainda que o Conselho não estivesse autorizado a pedir à Polícia Federal perícia nos papéis de Calheiros, terá sido ela feita de forma ilícita ou fraudulenta? De mais a mais, quando o colegiado nem sequer tem regimento próprio, a sua conduta pode ser julgada de um modo ou, pelo seu contrário, gerando controvérsias intermináveis. Desnecessário dizer a quem tudo isso interessa.

Mas é importante assinalar que o presidente do Senado não precisou enfrentar uma guerra sem quartel para tentar levar a bom termo a sua operação-abafa. Ao longo dos últimos 30 dias, apenas vozes isoladas, como as dos senadores Pedro Simon, Jefferson Peres e Jarbas Vasconcelos, protestaram contra as maquinações de Calheiros que se disseminavam pela Casa como a metástase nos organismos assaltados por um câncer devastador. Na oposição, só o DEM (ex-PFL) decidiu obstruir as votações enquanto o presidente não se licenciasse da função. A bancada tucana, de seu lado, ficou corajosamente em cima do muro. Não chegou o seu líder Arthur Virgílio a advertir contra eventual atitude ¿udenista¿ diante das suspeitas envolvendo o seu amigo Calheiros? (A esse ponto chegamos. A histórica prioridade dada pela UDN à ética transformou o ¿udenismo¿ em pejorativo.)

Ontem, porém, para surpresa geral, a Mesa deteve o processo de desmoralização do Senado, que tudo sugeria ser irreversível. Contrariando as expectativas de que ou mandaria arquivar pura e simplesmente o processo ou empurraria a solução para depois do recesso da segunda quinzena do mês, contando com o tempo para desidratar o problema do presidente, teve a decência de devolver a matéria ao Conselho. A decisão, unânime, desmontou a ¿armadilha jurídica¿ denunciada na véspera pelo líder do DEM, José Agripino, enriquecendo a coleção de derrotas de Calheiros. Antes assim. Numa Casa em que tantos perderam a vergonha, os que a conservam, ainda que em vestígios, finalmente souberam o que fazer com ela.