Título: A lei faz o mais forte
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/07/2007, Nacional, p. A6

O presidente Luiz Inácio da Silva acertou na hipótese, errou na premissa, claudicou no argumento e, com isso, prejudicou a tese que defendia, segunda-feira no Rio de Janeiro, sobre a forma de enfrentamento da criminalidade por parte do Estado.

¿Queremos competir com o crime organizado, com a certeza de que só iremos derrotá-lo na hora em que conseguirmos levar os benefícios (sociais) para dentro desses lugares mais pobres do Brasil¿, disse ele, ao anunciar a liberação de recursos para infra-estrutura nas favelas do complexo do Morro do Alemão, no Rio.

A afirmação de que é indispensável a presença do Estado para suprir as necessidades das populações de áreas ocupadas pela bandidagem está correta. Mas, nessa altura, é apenas um dos fatores em jogo.

Tal raciocínio já não se basta. Fez sentido décadas atrás, quando o poder público abandonou aquelas populações à ¿proteção¿ do crime.

Hoje tais ações são quase inócuas para enfrentar o terror imposto pelos chefões aos moradores. Instalou-se a lei da selva com tanta força e de tal forma o Estado se distanciou do cidadão, deixando-o refém da criminalidade, que a libertação mediante a desocupação das cidadelas de bandidos precede qualquer ação social.

Sob a lei do pânico e da retaliação, as comunidades facilmente seriam pressionadas a reagir contra a atuação do Estado e usadas como escudo do narcotráfico.

Portanto, primeiro o poder público precisa ganhar a guerra. Não cabe ao governo, como disse o presidente, ¿competir¿ com o crime, mas atuar para ganhar dele, sob a imposição da lei do mais forte.

Isso não significa dizer que a batalha deva ser feita ao custo da vida daquelas populações e da ação truculenta e indiscriminada da polícia, cujo dever primeiro é proteger o cidadão pertencente ao mundo da legalidade - vale dizer, a maioria.

Tal como simplificou o cenário quando falou sobre a competição - colocando-se, ainda que involuntariamente, ombro a ombro com as forças da marginalidade -, foi simplório em sua diatribe contra os que defendem o combate ao crime com ¿pétalas de rosa¿.

Hoje quase ninguém mais defende isso, pois o discurso exclusivo da injustiça social como motor do crime - caro à velha esquerda - perdeu espaço na sociedade. Mais uma vez, o presidente recorreu às facilidades da oratória vazia.

Teria, como é de seu gosto, apenas ensinado o óbvio - ¿A gente tem que enfrentar sabendo que eles muitas vezes estão mais preparados que a polícia, com armas mais sofisticadas¿ - se não tivesse também incorrido em duas graves impropriedades.

A primeira, falar em falta de aparelhamento policial como se não fosse esta uma providência atinente ao poder público, a quem caberia a ordenação de um plano nacional de ação até hoje inexistente.

A outra é o sentido subjacente ao discurso das ¿pétalas de rosa¿. Lula falou sobre a necessidade do uso da força.

Necessária, não a bruta e burra que sacrifica inocentes, mas a estrategicamente aplicada na extirpação desse câncer. Em operação cujo cirurgião-chefe tem a obrigação de assumir a condução dos trabalhos e deixar de lado a condição de locutor que nos fala como se nada tivesse a ver com o assunto em pauta.

De mal a pior

Renan Calheiros começou com 80 senadores a seu favor. Ontem era alvo da quase unanimidade quanto ao imperativo de se licenciar. Ele não ¿arreda pé¿ e, com isso, convence a Casa de que já incorre em ato de lesa-instituição.

Há três semanas dispostos a absolver o presidente, os senadores evoluem majoritariamente para a punição. Em conjunto, oferecem a Calheiros uma saída. Ele ignora e dificulta o recuo, ainda desejado por seus pares.

Efeito-província

O lodaçal em que está mergulhado o senador e ex-governador de Brasília Joaquim Roriz é profundo, amplo e abriga também vários personagens de destaque no mundo político-empresarial da capital da República.

Há conluios de toda sorte, açambarcando os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo em compadrio com um grupo de gente que enriqueceu mediante favorecimentos e negociatas em ambiente de terra de ninguém no meio do Planalto Central, perto do poder, mas longe da opinião pública dos centros mais informados - uma conjugação favorável para fazer de Brasília um quintal fértil a ilícitos.

E exatamente por ser um grupo quase todo referido na espoliação e no imediatismo, não dispõe de peso político, respaldo social nem significado nacional.

Por essas e outras é que o atual processo contra o senador Roriz segue sem as barreiras de proteção com as quais pôde contar Renan Calheiros.

Este soube criar a imagem de distanciamento da província, fez relações, construiu laços, mas conservou na alma os ensinamentos adquiridos na terra natal e perdeu-se na ilusão de que a truculência tem aceitação ilimitada. Em cenários mais civilizados, não tem.

Quando é muita, vira veneno e mata o dono.