Título: O Brasil e a Arábia Saudita
Autor: Goldemberg, José
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2007, Espaço Aberto, p. A2

É difícil imaginar dois países mais diferentes do que a Arábia Saudita e o Brasil. O primeiro é um deserto e sua única riqueza, o petróleo. O segundo é 15 vezes maior e possui a maior floresta tropical do mundo, além de ser um país com amplas áreas férteis e bem irrigadas no Sudeste, onde se encontra uma das agriculturas mais competitivas do mundo. No subsolo do Brasil não existe petróleo, que se encontra apenas na plataforma continental a grandes profundidades. Na Arábia Saudita toda a riqueza do país está abaixo do solo; no Brasil, acima do solo.

Apesar destas diferenças, tornou-se popular a idéia de que o Brasil poderia tornar-se a ¿nova¿ Arábia Saudita com sua produção de álcool (etanol) de cana-de-açúcar. Quão verdadeira é esta percepção?

A Arábia Saudita produz pouco mais de um décimo de todo o petróleo usado no mundo, mas isso a coloca na posição de principal produtora, pela qual domina o mercado mundial. Aumentando ou reduzindo sua produção, ela acaba determinando o preço do barril de petróleo no mundo todo.

Quais são as reais possibilidades de que o Brasil venha a ser uma ¿Arábia Saudita do álcool¿?

Álcool de cana-de-açúcar é um excelente combustível, que substitui bem a gasolina. Além disso, ele é renovável e não poluente, o que o torna superior à gasolina, que é obtida do petróleo. A produção brasileira de álcool já substitui 40% da gasolina usada no País. Para isso são usados 3 milhões de hectares de terra, o que é pouco comparado com a área total usada para a agricultura no Brasil, que são 60 milhões de hectares.

Para substituir 10% de todo o petróleo do mundo - o que nos tornaria uma ¿Arábia Saudita do álcool¿ - seriam necessários 100 milhões de hectares cobertos de cana-de-açúcar, uma meta muito difícil de atingir mesmo substituindo outras culturas por esta. Para atingi-la seria preciso aumentar substancialmente a área cultivada, o que poderia criar sérios problemas ambientais, com a destruição de áreas vulneráveis.

O que é realista é estabelecer metas mais modestas, mas nem por isso menos significativas.

Dobrar ou triplicar a produção de álcool no Brasil é factível e poderá ser conseguido em cerca de dez anos, sem causar grandes problemas ambientais, porque existem no País dezenas de milhões de hectares de áreas degradadas nas quais a agricultura se poderia expandir. Só no Estado de São Paulo são 10 milhões de hectares de pastagens, onde são criados bovinos que têm à sua disposição um hectare por cabeça, ou seja, um campo de futebol. Outra opção é aumentar a produtividade da cana-de-açúcar nas áreas em que já está implantada, sem a necessidade de expandi-las.

Basta aumentar um pouco a densidade do gado no solo para fazer isso sem o risco de empurrá-lo para a Amazônia. Já o cultivo da cana-de-açúcar no Pantanal e em certas áreas de Mato Grosso e Minas Gerais, contudo, pode necessitar de cuidados especiais e o Ibama precisa ficar vigilante para que abusos que desmoralizem o programa não ocorram.

Os países que produzem álcool a partir do milho, como os Estados Unidos, ou da beterraba e de cereais, na Europa, sabem muito bem disso e estão preocupados porque o etanol brasileiro poder ser produzido pela metade do custo daquele outro. Importar álcool do Brasil vai inviabilizar sua produção nesses países.

Esta é a origem das restrições à importação de álcool do Brasil, que se manifestam de três formas:

A produção de álcool vai gerar fome no mundo porque vai substituir a produção de alimentos - o que é absurdo quando se olha a área que está sendo dedicada à cana-de-açúcar no Brasil para a produção de álcool, menos de 5% do total. Este é, porém, um sério problema nos Estados Unidos, onde a expansão da produção do milho em áreas antes ocupadas por soja está provocando aumento no custo desse cereal.

Haverá danos ambientais inaceitáveis, como a destruição da floresta amazônica - sucede que a cana-de-açúcar não cresce bem na Amazônia. Poder-se-ia argumentar que a expansão da cana em pastagens vai empurrar o gado para a Amazônia, mas isso não é necessariamente o que vai ocorrer, como se viu acima, pois a substituição poderá ser feita em áreas de pastagens, aumentando a densidade de ocupação pelo gado e liberando assim novas áreas para a cultura da cana.

Na realidade, produzir álcool apenas disfarça o problema, pois se gasta muito combustível fóssil para produzi-lo; portanto, o álcool não seria, de fato, um combustível renovável - este é o caso quando se usa o milho ou outros cereais para produzi-lo, mas a situação com cana-de-açúcar é realmente muito mais favorável: para cada litro de combustível usado se produzem quase dez de álcool.

Nos Estados Unidos ou Europa, uma unidade produtora ¿importa¿ combustíveis fósseis para o processo de produção do álcool. No caso do Brasil, usa-se como fonte de energia o bagaço de cana, do qual se obtêm o calor e a eletricidade necessários ao processo de preparação do álcool, desde o esmagamento da cana até a destilação do produto final, aliás, como se fazia em pequena escala nos velhos alambiques que faziam cachaça. Uma destilaria no Brasil não ¿importa¿ energia e até ¿exporta¿ o excedente, vendendo eletricidade às distribuidoras de energia.

Em conclusão, o que se pode dizer é que, graças à disponibilidade de terra e a um clima favorável, o Brasil poderá ser um grande produtor de álcool - talvez duas ou três vezes a produção atual - sem grandes problemas de competição com outras culturas e sem gerar sérios problemas ambientais.

Com isso o País não se tornaria a ¿Arábia Saudita do álcool¿ - sendo mesmo desejável que outros países com clima tropical apropriado sigam o mesmo caminho, até porque estes países têm todas as condições para tal -, mas ainda assim seria o seu maior produtor mundial.

José Goldemberg é professor da Universidade de São Paulo