Título: Reagir é preciso
Autor: Di Franco, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2007, Espaço Aberto, p. A2

nas páginas dos jornais? Inúmeras, estou certo. Elas estão contidas, freqüentemente, em declarações de políticos apanhados com a boca na botija, no constrangimento de homens públicos obsessivamente preocupados com a própria imagem e no destempero dos autoritários do mais variado colorido. Todos, independentemente da contundência de suas impressões digitais, negam tudo. Procuram, invariavelmente, um bode expiatório para justificar seus delitos. A culpa é da imprensa! A acusação, carregada de cinismo, é uma manifestação explícita de desprezo pela verdade. Vejamos dois episódios recentes. Ambos emblemáticos.

Renan Calheiros (PMDB-AL), acuado pela força dos fatos, decidiu atacar a imprensa, acusando setores da mídia de quererem derrubá-lo: ¿O que está acontecendo é uma covardia. Setores da mídia tentaram derrubar o presidente da República¿ (referia-se Calheiros aos escândalos que, recorrentemente, bateram às portas do Palácio do Planalto), ¿não conseguiram, perderam no primeiro turno e no segundo turno e, agora, querem fazer com o presidente do Senado uma espécie de terceiro turno.¿ E, num assombroso exercício de cinismo, completou: ¿Eu não sei do que me acusam. Essa crise é uma crise artificial. O que há contra mim? Qual é a acusação que me fazem?¿ Impressionante!

Que fez a imprensa para provocar tamanha ¿indignação¿? Cumpriu o seu dever. Fez o que qualquer repórter iniciante está obrigado a fazer. Checou as supostas provas apresentadas em defesa do presidente do Senado. E elas simplesmente não paravam em pé. Vejamos algumas questões que ameaçam o presidente do Senado:

Quem pagou pensão e aluguel a Mônica Veloso, a jornalista com quem Renan Calheiros tem uma filha de 3 anos, fora do casamento? O lobista Cláudio Gontijo, da empreiteira Mendes Júnior, ou o próprio senador? Até agora, há muita sombra e pouca luz nas explicações de Calheiros.

Por que há contradições nos documentos apresentados para justificar renda com venda de gado? Há empresas não habilitadas para as transações e diferenças entre número de animais vendidos com o declarado nas notas fiscais.

Por que Renan não apresentou notas fiscais de venda de gado do ano de 2004, em que teria recebido R$ 236.144,32 provenientes das transações? Foi nesse ano (e até novembro de 2005) que o lobista Gontijo teria pago as despesas de Renan com Mônica.

Por que Renan inflou seus vencimentos com a verba indenizatória, se o recurso não é renda nem pode ir para o bolso do parlamentar, já que serve para ressarcimento de atividades do cargo no Congresso?

Que fazer? Mentir? Sonegar informação? Cumprimos, todos, o nosso dever: informar. E nada mais. Os meios de comunicação existem para incomodar. Um jornalismo cor-de-rosa é socialmente irrelevante. A imprensa, gostem ou não os políticos, tem o dever de desempenhar importante papel na recuperação da ética na vida pública.

E o ex-senador Joaquim Roriz? Reproduzo algumas pérolas contidas em sua carta de renúncia ao mandato: ¿Somente me pesa na consciência o mal que venho sofrendo, que tanto me tortura e procura turvar uma vida pautada na dignidade pessoal, no respeito ao semelhante, no resguardo da coisa pública, no profundo sentimento cristão.¿ Após o preâmbulo de uma declaração digna de um carmelita descalço, o ex-senador aponta o culpado por seu percalço: ¿O furor da imprensa, o açodamento de alguns, as conclusões maliciosamente colocadas lamentavelmente ecoaram mais alto.¿ A imprensa, mais uma vez, é apresentada como a grande vilã. A reação do ex-senador não merece duas linhas de comentário. Sua renúncia é, de fato, o reconhecimento cabal de sua culpabilidade.

A sociedade assiste, atônita, às conseqüências do pragmatismo aético que se instalou nas entranhas do poder. A governabilidade, palavra tão usada pelo presidente da República, transformou-se no outro nome da indecência. Loteia-se a Nação em nome da tal governabilidade. Incompetência e ladroagem caminham de mãos dadas.

Segundo o relatório Assuntos de Governança, divulgado recentemente pelo Banco Mundial, o índice do Brasil desceu para 47,1 em 2006, numa escala de 0 a 100. O Banco Mundial explica no texto que esse item mede ¿a extensão em que o poder público é usado para ganhos privados, incluindo pequenas e grandes formas de corrupção¿. A confiabilidade da polícia e dos tribunais está em 41,4, o pior índice desde 1996, quando o banco começou a divulgar essa avaliação.

Resumo da ópera: não vamos bem. A sociedade está refém de uma miragem provocada pelos bons ventos da economia mundial e pela gastança marqueteira do governo. O povo está, de fato, anestesiado pela força persuasiva de ações populistas e não consegue ver a agressão que se esconde em cada ato de corrupção. O drama da saúde pública, as filas intermináveis em hospitais sucateados e a injustiça, brutal e endêmica, são resultado da pornográfica corrupção que se oculta sob a névoa de um crescimento de fachada. Mas, como acontece com os dependentes químicos, a depressão será a conseqüência inevitável da euforia artificial. Não se constrói um país num pântano. É impossível.

Ou recuperamos os valores éticos, indispensáveis para o autêntico crescimento sustentado, ou assistiremos indefesos ao suicídio da cidadania. Reagir é preciso!

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia E-mail: difranco@ceu.org.br