Título: Burocracia contra a ciência
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2007, Notas & Informações, p. A3

Dispor de cientistas qualificados não basta para o Brasil tornar-se competitivo no campo da pesquisa científica. Trabalhos importantes, muitos com características pioneiras, se perdem por causa de um problema que retarda não apenas o avanço da ciência, mas o próprio crescimento do País: o excesso de burocracia. Retidos na alfândega por meses, ou até por anos, em razão das muitas exigências de diferentes órgãos do governo, materiais de pesquisa e até equipamentos se perdem ou se tornam obsoletos.

A reportagem de Ricardo Westin, publicada sexta-feira no Estado, revela um quadro impressionante das enormes dificuldades que, além da crônica falta de verbas, os cientistas brasileiros precisam superar para realizar suas pesquisas.

A bióloga Mayana Zatz, considerada uma das principais especialistas do Brasil em genética, por exemplo, relatou o caso de um grupo de cientistas do Uruguai que, há quatro meses, enviou para a Universidade de São Paulo (USP), para exame, material genético de uma família afetada por um tipo de distrofia muscular. Para liberar o material retido na alfândega do Aeroporto de Guarulhos, as autoridades exigiram ¿mais de 15 documentos¿. Depois de correr atrás desses documentos, a bióloga brasileira desistiu. ¿Queriam até uma `identificação visual¿ do material importado. Vou mandar a foto da dupla hélice do DNA?¿, diz ela com ironia. Mayana Zatz chegou à conclusão de que não adiantava mais tentar a liberação do material. Mantido em condições inadequadas, ele se deteriorou.

Do ponto de vista formal, a explicação das exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - órgão encarregado de fiscalizar a entrada no País de produtos que possam afetar a saúde - denota uma preocupação justificável. ¿Por se tratar de uma pesquisa, há a possibilidade de introdução de agentes etiológicos que poderão ocasionar transtornos à saúde do ser humano¿, daí a necessidade de ¿analisar os riscos sanitários¿, explicou a Anvisa. Quando todos os procedimentos legais são cumpridos, a liberação ¿é praticamente imediata¿, completou.

Mas o problema, para os cientistas, está justamente em saber quais são esses ¿procedimentos legais¿ e como cumpri-los com presteza. A Anvisa é um dos órgãos oficiais que atuam nessa área. Pode haver também exigências da Receita Federal, do Ministério da Agricultura e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O resultado concreto dessas dificuldades é uma espera de pelo menos seis meses entre a chegada do produto importado ao País e sua liberação para o pesquisador, de acordo com uma enquete feita em junho pela Federação de Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe) com 100 cientistas de 14 instituições. Há alguns meses, enquete semelhante realizada pela Sociedade Brasileira de Neurociências com 50 pesquisadores concluiu que 64% deles esperavam no mínimo seis meses para receber o material importado.

Em 2005, como mostrou a reportagem, uma máquina essencial para um estudo da Universidade Federal de Pernambuco sobre uma vacina terapêutica contra aids ficou mais de um ano retida na Receita porque a assinatura do doador francês, que já havia morrido, não estava autenticada.

É muito tempo. O reagente pode estragar, as células podem morrer, a máquina pode ficar obsoleta, observou em outubro do ano passado a bióloga Mayana Zatz, quando liderou um grupo de pesquisadores que entregou ao ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, um documento contendo queixas contra o excesso de papéis e de burocracia para a importação de material científico. ¿Lá fora, os cientistas iniciam a pesquisa dias após terem uma idéia; aqui levamos meses, às vezes anos¿, queixou-se a bióloga na ocasião. Cientistas se queixam de que, muitas vezes, gastam mais tempo resolvendo pendências na área alfandegária do que com suas pesquisas. ¿Somos cientistas, não despachantes¿, diz a veterinária e professora da USP Silvana Górniak.

Para o País, o resultado é o atraso na pesquisa científica - além da má imagem junto à comunidade científica internacional. Casos como os relatados constituem ¿um vexame internacional¿, diz Mayana Zatz. E não há como contestá-la.