Título: Caos aéreo
Autor: Oliveira, Alessandro
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/07/2007, Espaço Aberto, p. A2

O transporte aéreo é um daqueles setores que tradicionalmente servem como indicadores da saúde da economia. Por ter demanda derivada - isto é, procura atrelada a outros bens ou serviços, como turismo, negócios e logística -, o setor costuma estar presente nas análises dos economistas visando à antecipação e mesmo à projeção do aquecimento ou desaquecimento do nível de atividade como um todo. Assim, maior movimento nos aeroportos costuma ser apontado como um dos primeiros sinais, embora não o único, de que um país caminha bem.

Seguindo esta linha de raciocínio, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, manifestou há dias uma posição de questionamento ao que a mídia e a sociedade em geral vêm chamando de ¿caos aéreo¿. Para ele, os constantes problemas com atrasos dos vôos na aviação regular brasileira seriam indicativos da ¿prosperidade¿ da economia brasileira na atualidade. ¿Mais gente viajando, mais aviões, mais rotas¿, argumentou. Na cabeça do ministro está claramente embutida a noção do transporte aéreo como ¿termômetro¿ da economia.

Acontece que as evidências mostram que o ministro está enganado, infelizmente. Já faz algum tempo que o transporte aéreo brasileiro vem crescendo a taxas aceleradas, tendo-se descolado do próprio crescimento da economia. Por conta da desregulamentação propiciada pela Política de Flexibilização da Aviação Comercial Brasileira, nos anos 1990, o setor ganhou dinâmica própria e teve nítidos incrementos de produtividade e eficiência. No passado os analistas costumavam ter uma ¿regra de bolso¿ pela qual, para cada 2% de crescimento do tráfego aéreo, poderiam projetar 1% de crescimento do PIB no mesmo período. Hoje em dia, essa relação de 2 para 1 está longe de ser realidade. Em 2005, por exemplo, o transporte aéreo doméstico cresceu 26,7%, enquanto a economia rateou com míseros 2,94%, ou quase dez vezes menos. Adicionalmente, o uso deste setor como ¿termômetro¿ na atual conjuntura tem de ser bastante relativizado, por se tratar de um momento de tradicional alta das viagens ao exterior, ainda mais dada a forte alavancagem que o câmbio apreciado gera na demanda por vôos internacionais.

Como conseqüência de 15 anos de medidas de liberalização econômica, o País tem hoje um transporte aéreo mais competitivo e eficiente, mas também com operação mais concentrada em poucos aeroportos e regiões. Isso aconteceu porque as companhias aéreas vêm alocando um número cada vez maior de vôos nos mercados onde detêm capacidade de precificar mais alto e acima do custo marginal - ou seja, de exercer poder de mercado. E como os custos incluem tarifas de infra-estruturas que são invariáveis com relação às condições do próprio mercado, tem-se reforçado o efeito de maior atração de vôos. Desta forma, é natural observar uma concentração de operações em aeroportos centrais e em horários de pico, em que o poder de mercado é mais elevado, o que é reforçado por conta da invariabilidade da regra de precificação das infra-estruturas.

Assim, desde o final de 2000 tem havido, por parte das companhias aéreas, um movimento de concentração dos vôos regulares nos dez maiores aeroportos brasileiros em detrimento dos aeroportos de pequeno e médio portes. De fato, a fatia de mercado dos dez principais aeroportos subiu de 35%-40% para algo em torno dos 50%. Isso implica deterioração da cobertura do setor ao longo do território nacional. Adicionalmente, esta deterioração vem acarretando forte vulnerabilidade do sistema aéreo a choques nos dois principais aeroportos do País, dado que um em cada quatro vôos domésticos parte de Congonhas ou de Brasília. Com a maior concentração em poucos aeroportos (¿hubs¿), temos o atual congestionamento nos grandes centros, com geração de gargalos na infra-estrutura aeroportuária e do espaço aéreo. A combinação de livre mercado para o setor aéreo (política de flexibilização) com o estrito controle e regulação das infra-estruturas relacionadas se mostrou, assim, fortemente indutora de perdas de bem-estar econômico - e não de prosperidade.

Com vista à alavancagem do crescimento econômico, na pauta do governo devem constar as expressões ¿eficiência microeconômica¿ e ¿reformas regulatórias¿. No caso específico do setor aéreo, deve-se avançar na desregulamentação econômica, promovendo uma ¿flexibilização¿ também das infra-estruturas aeroportuárias e de espaço aéreo, em conjunto com a introdução de mecanismos de fomento à aviação regional e de indução de tráfego em aeroportos secundários ou subutilizados. Privatizações e Parcerias Público-Privadas devem igualmente estar presentes nas discussões, dado que é fundamental não apenas induzir mais investimentos, mas também alavancar a gestão aeroportuária, possibilitando maior flexibilidade e agilidade nas negociações entre representantes locais dos aeroportos e as companhias aéreas. Estas medidas têm a potencialidade de conciliar o livre mercado - e seus visíveis benefícios para o transporte aéreo, com preços em queda e demanda em alta - com metas de universalização social e territorial. Como conseqüência, tem-se aí uma política que minimizaria os riscos de gargalos de infra-estrutura no setor.

O que o ministro parece não ter enxergado é que o congestionamento e os atuais problemas nos aeroportos brasileiros são sinais claros de que a economia não está prosperando. O crescimento econômico sustentável não vai ocorrer enquanto houver setores importantes sem marco regulatório estável e bem definido e sem regras claras para a utilização e investimento nas infra-estruturas. Ao contrário de um atestado de que a economia brasileira vai bem, os problemas do setor aéreo apontam as razões de nossa economia não conseguir alçar um vôo com trajetória ininterrupta de crescimento e prosperidade - e sem atrasos.