Título: Mais uma 'vítima' da mídia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/07/2007, Notas & Informações, p. A3

Se o patriotismo, como o inglês Samuel Johnson dizia no século 18, é o último refúgio dos velhacos, qual será, no Brasil deste começo de século 21, o derradeiro porto de abrigo dos que deram motivo para serem percebidos pela opinião pública como membros da mesma ignóbil confraria? Até o mais distraído dos brasileiros há de saber que a resposta é uma só: a imprensa. Deixe-se claro desde logo que o jornalismo é uma atividade cujas aspirações ficam muitas vezes além de suas realizações: a edição inteira de um diário talvez seja insuficiente para registrar os erros em que costumam incorrer, em toda parte, os historiadores do cotidiano, como são chamados os praticantes do ofício.

Mas há um abismo entre esse reconhecimento realista e a atitude ultrajante dos políticos apanhados em débito com a decência, que atribuem as suas merecidas atribulações a malévolas maquinações da mídia. A tais extremos chegam os adeptos dessa desfaçatez que, horas antes de renunciar para não ser cassado por gritantes atentados ao decoro - ou melhor, por documentadas bandalheiras -, até o senador Joaquim Roriz se permitiu culpar o ¿furor da imprensa¿ pela sua descida aos infernos. Justamente ele que, nos seus quatro mandatos de governador, transplantou para o Distrito Federal o que há de pior, pelo Brasil afora, em matéria de políticas clientelistas, populismo e negócios escusos com o submundo do dinheiro fácil.

A sua investida foi rombuda como os seus métodos. Serve apenas para ilustrar o grau de desmoralização do próprio procedimento mendaz. Já o presidente do Senado, Renan Calheiros - que doravante não terá um ¿boi de piranha¿, como Roriz, para tentar passar incólume pelo Conselho de Ética -, procura construir uma teoria conspiratória, igualmente centrada na imprensa, a fim de se pôr em trajes de vítima, em que pesem os remendos que recobrem a esfarrapada roupagem. No mesmo dia do ¿furor¿ de Roriz, ele fabricou a versão segundo a qual ¿setores da mídia¿, não tendo conseguido derrubar o presidente da República e depois de perderem no primeiro e no segundo turno, ¿agora querem fazer com o presidente do Senado uma espécie de terceiro turno¿.

Na realidade, quem pediu o impeachment de Lula, com a estridência que lhe é própria, foi o atual ministro Roberto Mangabeira Unger. Tudo mais é contrafação. A começar da pergunta retórica: ¿Qual a acusação que me fazem? Que eu tive um filho fora do casamento?¿ Ora, esse é o único aspecto do caso que não está em tela de juízo. As interrogações que ele não consegue esclarecer são outras. Uma é sobre o verdadeiro papel do lobista de empreiteira nos pagamentos à ex-amante; outra, sobre a fidedignidade, posta em xeque pela Polícia Federal, dos papéis das vendas de bois com que Calheiros quis provar que tinha recursos próprios para pagar as suas dívidas; outra ainda, sobre se elas foram efetivamente cobertas por esse patrimônio - e não por eventuais ¿recursos não contabilizados¿.

Tivesse ele um mínimo de sensibilidade para o seu entorno cada vez mais desfavorável no Congresso, não enveredaria pelo beco sem saída das alegações cínicas sobre ¿setores da mídia¿ e ¿terceiro turno¿, com as quais imagina estabelecer uma comunhão com Lula, alvejado, segundo sua versão, pelo mesmo inimigo em momento distinto. Não será por isso que o presidente se engajará em seu socorro, fazendo mais do que já fez por ele, ou seja, aparecer ao seu lado em público e sacar da platitude de que todos são inocentes enquanto não se provar a sua culpa. E não é de hoje que o Planalto pesa os custos e os benefícios de cada atitude que poderá tomar conforme os desdobramentos do escândalo. Por mais que Lula deva a Calheiros, por mais que lamente que tudo isso esteja acontecendo, é improvável que o apóie até o último cartucho.

Quando, um depois do outro, 14 senadores sobem à tribuna para pedir que ele desça da presidência; quando, uma depois da outra, as suas manobras dão com os burros n¿água - complicando, em vez de aliviar, os seus problemas -; quando dois dos três novos relatores do Conselho de Ética querem estender as investigações à evolução do seu patrimônio entre 2002 e 2006; Lula já folheia o álbum de senadores peemedebistas de olho em um possível sucessor para o alagoano. Agredir a mídia não o preservará.