Título: Inapetência reformista
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2007, Economia, p. B2

A despeito das excelentes notícias econômicas, o País vive profundo desânimo diante do desgaste das instituições e das dificuldades que tem o governo para encaminhar soluções de fôlego quanto a temas essenciais. São grotescas, por irrealistas, as dúvidas dos senadores quanto aos efeitos devastadores do episódio Renan Calheiros sobre a credibilidade da Casa. O debate sobre a corrupção é trivial. Estaria havendo generalização de práticas corruptas? Ou, ao contrário, melhoria na repressão? Isto num quadro de impunidade generalizada, em que os esforços policiais se assemelham aos do mitológico Sísifo, condenado perpetuamente a carregar rochas montanha acima para vê-las, sempre, rolar montanha abaixo. Afinal, não é preciso debate para constatar que os atuais níveis de práticas criminosas no País são inaceitáveis e que sua solução deveria ocupar parte significativa das agendas do governo e da oposição.

É tentador buscar paradigmas históricos nos quais mirar para extrair lições sobre corrupção e progresso institucional. Concentrando a atenção no caso clássico: a Grã-Bretanha do final do século 18 estava imersa na 'velha corrupção', que resultava em benefícios para pequeno grupo de privilegiados. As pressões dos excluídos, aliadas ao temor dos privilegiados quanto 'à perda de dedos, se não entregassem os anéis', levaram ao lento aumento do eleitorado e a reformas que aboliram sinecuras, pensões, contratos sem concorrência, prebendas eclesiásticas, 'burgos podres', culminando na abolição da proteção à produção de grãos e à navegação.

Entretanto, é difícil identificar no Brasil nexo robusto entre avanços democráticos e propensão a reformar. No caso do presidente Lula é como se a 'virtù' do príncipe maquiavélico estivesse comprometida com conservar o poder, pouco sobrando para almejar 'grandes coisas'. O governo pouco fez quanto à urgente agenda de reformas. Persistem sem solução: o cipoal tributário; regras regulatórias que estimulem investimentos na infra-estrutura; desequilíbrio estrutural das contas públicas; incentivos ao aumento significativo de investimentos; calamitosa morosidade da Justiça; avanço da criminalidade; e superlotação nas prisões.

Mesmo o grande sucesso reformista, que foi a política de estabilização, tem grandes dificuldades de ser absorvido politicamente, especialmente pelo PT, como mostram recentes pronunciamentos por parte de membros da coalizão governamental que engoliram com dificuldade a Carta ao Povo Brasileiro. É como se inflação baixa não favorecesse os pobres e gerasse votos. É penoso o contraste entre esta fragmentação de opiniões e, por exemplo, a sanção unânime da sobrevivência de uma Justiça que é substantivamente de classe.

A inapetência reformista não é monopólio governista. Na oposição, em particular no PSDB, não se vislumbra intenção de dar continuidade ao programa reformista do governo FHC. Muito ao contrário. O programa do último candidato presidencial do PSDB derrotado por Lula era singularmente recatado quanto a reformas. Privatização virou tema a ser explicitamente evitado e a agenda reformista era fraca. O pano de fundo, algo difuso, era a crítica à política econômica do primeiro mandato de Lula.

Já o atual governador de São Paulo é bem mais explícito. Em meio aos graves problemas administrativos que enfrenta, encontrou ocasião para criticar incisivamente a política econômica do governo, em particular o que considera o 'desvario cambial' que tem resultado na apreciação do real em relação a outras moedas. Embora invocando a sua condição de economista, o governador foi singularmente avaro no uso de argumentos econômicos. Parecia estar defendendo um pacote de medidas que incluiria a imposição de taxação sobre lucros de estrangeiros com aplicações em títulos públicos e a redução significativa da taxa Selic. Ignorou todas as estimativas que têm circulado sobre o impacto de diferentes variáveis sobre a taxa de câmbio e que indicam a modesta contribuição do diferencial de juros. Com base em suas declarações anteriores, presume-se que seja ainda favorável à imposição de tributação sobre exportações selecionadas, outra estapafúrdia pièce de resistance do saudosismo tucano em relação à política econômica pré-Plano Real. Evitou, entretanto, retomar a sua agenda protecionista de 1995. As virtudes fiscalistas do governador, fruto da sua ação como secretário no governo de São Paulo na década de 1980, parecem permanentemente ofuscadas por sua ação como crítico do Plano Real no governo Fernando Henrique e, agora, pelas críticas à atual política econômica. É explícita a sua preferência por mais intervenção estatal e a sua disposição em aceitar um aumento da inflação em nome de mais crescimento a curto prazo. Quanto a reformas estruturais, o discurso do governador tem sido reticente.

Este quadro desértico de talentos reformistas no governo e na oposição valoriza o desempenho de Fernando Henrique Cardoso que formulou e implementou parcialmente um conjunto de reformas estruturais, cujos resultados estão agora amadurecendo. Mas esta constatação só faz chamar a atenção para quão acidental foi a sua ascensão e sublinhar a baixa probabilidade de que o PSDB seja de novo bafejado pela sorte. A escolha em 2010 vai ser dura.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio