Título: Há algo de podre na república brasileira
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/07/2007, Notas & Informações, p. A3

Não faltava mais nada para confirmar aquilo que a imensa maioria dos brasileiros já percebeu há muito tempo: a corrupção vem se tornando mais persistente e disseminada, em que pesem os esforços dos governos para combatê-la. Um relatório do Banco Mundial (Bird), divulgado por irônica coincidência no mesmo dia em que a Polícia Federal anunciou ter desmantelado mais uma quadrilha especializada em fraudar licitações - dessa vez na Petrobrás -, pode ser interpretado como contestação à hipótese confortadora segundo a qual não é a corrupção que aumenta no Brasil, mas sim a sua visibilidade, graças à multiplicação das investidas policiais contra os corruptos.

O Bird trabalha com o conceito de corruption control, que a rigor indica não o controle da corrupção pelo Estado, mas o grau da infestação do Estado pela corrupção. Tanto que o sistema mede ¿a extensão em que o poder público é usado para ganhos privados, incluindo desde pequenos e grandes assaltos ao Tesouro Nacional, até o `seqüestro¿ do Estado pelas elites e pelos interesses privados¿. Numa escala de zero a cem, quanto mais baixo o indicador, maior o vulto da rapina a que está submetida a área estatal. De acordo com esse critério - e com dados coligidos, no caso brasileiro, por 18 órgãos internacionais - o País nunca esteve pior, nesse ¿requisito¿, desde que o Bird iniciou, em 1996, o levantamento sistemático do estado da governança no mundo.

Ao longo desses 10 anos, o Brasil conheceu o seu melhor momento em 2000, quando o nível de corrupção era de 59,7. Outro bom ano foi 2003, com a marca de 56,3. Em 2006, acentuando-se a tendência de agravamento do quadro, iniciada dois anos antes, despencou para 47,1. Em outras frentes, os números também involuíram. A contar de 2003, o Brasil regrediu em matéria de qualidade dos serviços públicos, independência do governo e implementação de políticas públicas. Caíram ainda a qualidade dos marcos regulatórios - entendida como a aptidão dos governos de instituir leis de incentivo ao setor privado - e a confiança na polícia e na Justiça. O descrédito é o maior do decênio pesquisado, o que não haverá de surpreender ninguém que saia às ruas.

Não vai exagero em dizer que os brasileiros devem invejar a Dinamarca de Hamlet, porque nesse reino havia apenas ¿algo de podre¿. Só não se sabe o que ofende mais: se a podridão aparentemente infindável trazida à tona como que um dia sim, o outro também, ou o deboche dos suspeitos de terem parte com ela. Se fosse possível criar um indicador quantitativo para o que vem acontecendo no Senado, desde que, já lá se vão sete semanas, emergiu a história das relações financeiras entre o presidente da Casa, Renan Calheiros, e o lobista de uma empreiteira, o resultado teria pontuação negativa. O que se ouve na Câmara Alta da República é de enrubescer um sanguessuga.

Um dos relatores do processo no Conselho de Ética, o sergipano Almeida Lima, alta patente do Exército Brancaleone a que está reduzida a tropa de choque do ¿rei do gado¿ de Alagoas, acusou a mídia de nutrir a sede de vingança da ¿massa ignara¿. Faltou combinar com o amigo, que se gaba de ¿andar nas ruas todos os dias, colhendo de todo mundo manifestações de solidariedade¿. Em aparente estado de apoteose mental, Calheiros afirmou que, ¿se quiserem minha cadeira, e se esse desejo for um desejo político ocasional, oportunista, circunstancial (???) vão ter de sujar as mãos¿... ¿vão ter de colocar uma forca lá fora, ou uma fogueira¿, o que sugere que ele não decidiu se quer ser Tiradentes ou Joana D¿Arc. Entre uma bravata e outra, Calheiros indica que poderá levar o seu caso ao Supremo Tribunal Federal, alegando ¿vícios¿ nos procedimentos do Conselho.

O primeiro seria a perícia da Polícia Federal - que ele mesmo sugeriu - nos papéis, estes sim viciados, os quais atestariam a posse de recursos próprios que o dispensariam de pedir os bons ofícios do lobista. (Como se a posse provasse desembolso.) Os seus protestos de inocência são uma ode à desfaçatez. Ele assegura que ¿não há dinheiro público misturado nisso¿ (os seus gastos extraconjugais). Ninguém disse que há. A suspeita é de dinheiro privado facilitando a vida de um homem público, em troca de favores passados ou futuros. Exatamente a promiscuidade que o Bird caracteriza como ¿o `seqüestro¿ do Estado pelas elites e pelos interesses privados¿.