Título: Contestação no FMI
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/07/2007, Notas & Informações, p. A3

Americanos e europeus dividiram entre si, há cerca de 60 anos, o direito de governar o mundo de Bretton Woods, assim batizado em homenagem à pequena cidade onde se realizou, em 1944, a Conferência Internacional Monetária. Os primeiros teriam a presidência do Banco Mundial (Bird), criado para ajudar os países devastados pela guerra e as economias subdesenvolvidas. Os segundos teriam a chefia do Fundo Monetário Internacional (FMI), estabelecido para promover a disciplina cambial e o equilíbrio das contas externas. Essa partilha nunca foi assinada, mas vigorou sem muita contestação por mais tempo que os Tratados de Tordesilhas e de Saragoça, firmados em 1494 e 1529 por espanhóis e portugueses. Mas há sinais de mudança. O diretor-gerente do FMI, Rodrigo de Rato, deve deixar o posto em setembro. A sucessão, desta vez, pode ser menos pacífica.

A velha partilha continuou em vigor na recente mudança de chefia no Bird. O presidente Paul Wolfowitz, envolvido num escândalo por ter beneficiado a namorada, funcionária do banco, foi forçado a renunciar. O substituto apontado pelo governo americano, Robert Zoellick, foi aceito sem muita oposição pela comunidade internacional. Ainda assim, cumpriu a rotina de visitas internacionais para se apresentar e defender sua candidatura. Não precisava apresentar-se, pois havia sido o negociador comercial dos EUA e secretário-adjunto do Departamento de Estado. Wolfowitz teve maior dificuldade para ser aceito, por ter sido um dos articuladores da invasão do Iraque. O acordo informal nunca deixou de funcionar, mas também nunca implicou aceitação do primeiro nome indicado por qualquer das partes.

A contrapartida ¿normal¿ seria, agora, a indicação de um europeu para substituir De Rato. Depois de alguma resistência por parte do governo alemão, o recém-eleito presidente francês, Nicolas Sarkozy, conseguiu apoio da União Européia ao nome de Dominique Strauss-Kahn, ex-ministro das Finanças da França. Strauss-Kahn é considerado capaz de administrar o FMI, mas a solução tradicional, desta vez, é contestada mesmo na Europa.

O governo britânico apoiou o candidato francês, mas o ministro das Finanças do Reino Unido, Alistair Darling, ressalvou a preferência por um processo aberto à participação dos 185 países membros. A revisão foi defendida também pelo ministro das Finanças da Itália, Tommaso Padoa-Schioppa. A mudança deveria valer também para o Bird.

No mundo emergente, uma das primeiras manifestações foi a do ministro das Finanças da África do Sul, Trevor Manuel, uma figura de prestígio internacional. O ministro da Fazenda do Brasil, Guido Mantega, reforçou o coro e anunciou articulações com China, Índia e África do Sul. Depois, em tom mais modesto, defendeu pelo menos uma visita do candidato europeu aos países em desenvolvimento para expor suas idéias. ¿Se for um candidato tradicional não terá nosso apoio.¿ Com isso, caiu de novo na bravata inconseqüente.

É altamente improvável qualquer mudança, desta vez, na eleição do diretor-gerente do FMI. Mas a discussão pode ser produtiva, se o bom senso prevalecer. Uma boa pauta conterá alguns itens evidentes, já incluídos na reforma iniciada por Rodrigo de Rato. Um dos mais importantes é a revisão do sistema de cotas e do poder de voto. Por enquanto, houve apenas uma pequena redistribuição de cotas e votos para correção de desequilíbrios mais ostensivos. A China, obviamente, foi beneficiada. Mas não se tocou em questões mais delicadas, como o poder de veto. Esse poder pertence, hoje, aos EUA, com cerca de 17% das cotas. Como as decisões mais importantes dependem de 85% dos votos, quem detiver qualquer parcela acima de 15% terá a decisão final. O debate sobre a reforma deve incluir, também, uma revisão das funções do FMI e de seus mecanismos de prevenção de crises. Isso interessa aos países com fundamentos econômicos mais frágeis, e também àqueles, como o Brasil, em situação de relativa estabilidade. Em relação aos programas tradicionais, alguns governos defenderiam o afrouxamento dos critérios de ajuda e até, talvez, a eliminação das condições vinculadas a financiamentos. Se a discussão enveredar por esse caminho, quase certamente perderá a seriedade.