Título: A agonia das Santas Casas
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/07/2007, Notas & Informações, p. A3

A dívida de R$ 1,8 bilhão acumulada pelos hospitais filantrópicos com fornecedores, bancos e Previdência é uma séria ameaça aos serviços de saúde no Brasil. Das 2,1 mil unidades de saúde cadastradas na Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), 56% estão em cidades do interior e são a única unidade hospitalar local. Quase 65% da renda desses hospitais vem do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja tabela de remuneração cobre, no máximo, R$ 60,00 de cada R$ 100,00 de custos. Os hospitais esperam há oito anos a atualização da tabela, mas obtiveram apenas alguns pequenos reajustes, a partir de 2003, para procedimentos de alta complexidade, realizados só em grandes centros. Os hospitais de pequenas cidades, que fazem apenas atendimentos de baixa e média complexidade, não obtiveram nada.

Como mostrou reportagem no jornal Valor de quarta-feira, o SUS paga R$ 7,50 por consulta médica, quando o custo para o hospital é de R$ 21. Partos custam R$ 600,00, mas o sistema só custeia R$ 356,00. Além disso, são comuns os atrasos nos repasses. Sem condições de manter o atendimento à população, muitos hospitais filantrópicos vêm fechando as portas, reduzindo os atendimentos, funcionando precariamente sob intervenção ou sendo vendidos para empresas de planos de saúde.

Em 3 de junho, a Santa Casa de Franca, no interior paulista, publicou no jornal local um manifesto à população, comunicando sua dramática situação financeira, provocada pela defasagem da tabela única do SUS. A Santa Casa é um hospital de 110 anos e referência em média e alta complexidade para 700 mil pessoas da região. Apesar do convênio firmado com o governo estadual no valor de R$ 600 mil mensais para reduzir o déficit operacional, a instituição comunicou a adoção do regime contingenciado de trabalho, com redução de atendimentos ambulatoriais, cirurgias eletivas e exames de raio X.

Da dívida de R$ 1,8 bilhão acumulada pelo setor, R$ 500 milhões são de hospitais filantrópicos paulistas, que atendem a 60% das internações e reúnem um terço dos leitos no Estado. Em maio, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo liberou R$ 48 milhões para ajuda a esses hospitais - R$ 32 milhões foram destinados às Santas Casas e R$ 16 milhões a pequenos hospitais.

Os governos estaduais de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e outros também tentam socorrer o setor, mas como bem disse, em entrevista ao jornal Valor, o presidente da Federação das Santas Casas do Paraná, Charles London, para que essas instituições funcionem é preciso ser mais do que administrador. ¿É preciso ser mágico para a conta fechar.¿

A ¿mágica¿ que algumas Santas Casas criaram foi o lançamento de planos médicos próprios, a preços mais baixos que os praticados no mercado, para atender pacientes de classe média. Cobrem, assim, parte do déficit do atendimento pelo SUS. Mas a maior parte delas enfrenta uma crise que se arrasta há anos e que só pode ser resolvida quando forem revistos, com justiça, os valores da tabela do SUS.

Em campanha para a reeleição, há pouco mais de um ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que o Brasil tinha um sistema de saúde ¿quase perfeito¿. Meses depois, reconsiderou: ¿A verdade é que, se nós já fizemos muito, ainda assim fizemos pouco em função de uma dívida acumulada ao longo de décadas e décadas no tratamento da saúde pública.¿

De fato, os valores da tabela do SUS ficaram congelados entre 1994 e 2002. E assim continuam, para a maior parte dos procedimentos. É urgente que isso seja corrigido, evitando que mais hospitais filantrópicos fechem as portas. Essas unidades são responsáveis por 150 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano para a rede pública, fazendo uma verdadeira mágica com seus poucos recursos.

Num país onde, no ano passado, R$ 1,5 bilhão de verbas federais foram desviadas por ONGs e organizações da sociedade civil de interesse público, é inadmissível que os hospitais filantrópicos agonizem por falta de assistência federal.