Título: As 'inconveniências' de Kirchner
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/07/2007, Notas & Informações, p. A3

No final de maio, o governo argentino pediu às indústrias que fizessem uma redução ¿voluntária¿ do consumo de energia. Três semanas depois, o governo aumentou o racionamento ¿voluntário¿, mas o chefe do Gabinete de Ministros, Alberto Fernandez, negava categoricamente que houvesse uma crise energética. O que havia, esclarecia, repetindo a ladainha que o presidente Néstor Kirchner vinha desfiando, eram pequenos ¿problemas¿ de distribuição. Esta semana, o problema é ¿climático¿.

Na quarta-feira, mais uma vez o presidente Kirchner fez piada do apagão. ¿Desde o meu primeiro dia no governo escuto essa história, essa teoria do tal colapso e crise energética¿, disse, em tom irônico. Kirchner recusa-se a admitir que a Argentina mergulhou numa profunda crise energética. Enquanto ele fazia ironias, Bariloche ficava às escuras, os bairros de Palermo e da Recoleta, em Buenos Aires, sofriam demorados apagões, que também atingiram parte da Grande Buenos Aires.

Faltando quatro meses para as eleições presidenciais, Kirchner nega a realidade, numa tosca tentativa de evitar que os efeitos de uma das decisões mais demagógicas que tomou durante seu governo comprometam o projeto de fazer de sua mulher sua sucessora. Desde 2002, as tarifas de energia elétrica estão congeladas. Como a inflação acumulada chega a 100%, as empresas de geração e distribuição de eletricidade sofreram prejuízos - em termos reais, o quilowatt-hora chega hoje ao consumidor por um terço do preço que este pagava em 2001 - e deixaram de fazer novos investimentos. Várias delas deixaram o país.

A falta de investimentos atingiu, também, o setor de petróleo e gás. O país que, além de ser auto-suficiente, era também um exportador desses produtos, hoje se tornou importador líquido dos combustíveis. A crise é particularmente grave no caso do gás, que tem uma participação de 49% na matriz energética argentina. Na década de 1990, a produção era suficiente para o consumo interno e para honrar um acordo de exportação de 22 milhões de m³/dia para o Chile. Agora, a Argentina depende de importações da Bolívia. Até o começo da semana, exportava 1,1 milhão de m³ para o Chile - que precisa receber um mínimo de 1,6 milhão para não ter de usar suas reservas estratégicas. Na quarta-feira, interrompeu o fornecimento.

Kirchner culpa as geradoras e transmissoras de energia por ¿alguns inconvenientes¿. Também afirma que a falta ¿ocasional¿ de energia se deve ao crescimento da economia e à onda de frio. E adota medidas paliativas para a crise que insiste em dizer que não existe.

A primeira providência foi desviar o gás usado pelas indústrias e pelos veículos para as residências. O problema é que, para manter o aquecimento das casas dos eleitores, Kirchner privava 30 mil, dos 37 mil táxis de Buenos Aires, do combustível barato. Para não irritar os taxistas, que podem parar a cidade em questão de minutos e são tradicionais cabos eleitorais, mandou fornecer-lhes gasolina ao preço do gás. Não se sabe ao certo quanto o subsídio custará para o Tesouro. Mas estima-se, por alto, que não custará menos de US$ 2,5 milhões por dia.

Esse, no entanto, será o menor dos custos da demagogia e da imprevidência. O governo sabia, há tempos, que não seria possível manter índices de crescimento da economia no patamar dos 8% anuais, sem aumentar o suprimento de energia. Desde 2003, o consumo de eletricidade aumentou 43,5%, enquanto a capacidade de geração cresceu 2,5%. Uma vez superado o hiato criado pela depressão que durou do fim do último governo Menem até o início do governo Kirchner, a crise seria inevitável.

Mas o presidente tem uma maneira peculiar de governar. Entre encontrar soluções consensuais e harmoniosas para os grandes problemas do país e entrar em confronto direto e frontal com grandes empresas, não hesita. Parte para a briga. O resultado aí está. Muitas das principais indústrias do país já cortaram um turno de produção ou deram férias coletivas aos trabalhadores. A produção industrial já caiu 20% e as associações industriais alertam que o próximo passo será o corte ainda maior da produção e a dispensa de pessoal. Mas, para o presidente Kirchner, em plena campanha eleitoral, não há crise, apenas ¿inconveniências¿.