Título: CIA apresentou quadro sombrio para o Iraque
Autor: Woodward, Bob
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/07/2007, Internacional, p. A18

Diretor de agência informou Bush em novembro sobre falta de boas opções

No início da manhã de 13 de novembro de 2006, membros do bipartidário Grupo de Estudos sobre o Iraque reuniram-se em torno de uma mesa de madeira escura no Salão Roosevelt, sem janelas, na Casa Branca.

Durante mais de uma hora, eles escutaram o presidente George W. Bush apresentar o que um dos membros do painel chamou de visão 'churchilliana' da 'vitória' no Iraque e defender o primeiro-ministro do país, Nuri al-Maliki. 'Uma ordem constitucional está surgindo', disse ele.

Duas horas depois, ao redor da mesma mesa de reuniões, o diretor da CIA, Michael Hayden, apresentou aos membros do grupo de estudos um quadro totalmente diferente. Hayden disse que 'a incapacidade do governo iraquiano de governar o país parece irreversível', acrescentando que não enxergava 'nenhum marco ou ponto de referência a partir do que possamos reverter isso', de acordo com registros escritos de sua apresentação e relatos de seis participantes.

'O governo é incapaz de governar', concluiu Hayden. 'Gastamos muita energia e riqueza criando um governo que fosse equilibrado e ele não consegue funcionar.' Mais adiante na entrevista, ele amenizou um pouco a declaração: 'Um governo capaz de governar, de sustentar-se e defender-se não é exeqüível no curto prazo.' A sombria avaliação de Hayden, feita apenas uma semana depois de os republicanos perderem o controle do Congresso e de Bush demitir o então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, foi um momento crucial no intenso exame da guerra no Iraque realizado pelo grupo de estudos - e ajudou a moldar sua conclusão, num relatório final, de que a situação no país era 'grave' e estava se 'deteriorando'.

Nos oito meses passados desde a reunião, nem Hayden, nem outro funcionário do alto escalão de Washington descreveram o governo iraquiano em termos tão negativos quanto os usados pelo diretor da CIA em sua apresentação a portas fechadas.

Entre as 79 recomendações específicas que o Grupo de Estudos sobre o Iraque fez a Bush estava a retirada do apoio ao governo de Maliki se ele não mostrasse 'progresso substancial' em segurança e reconciliação nacional. O painel também recomendou que a missão principal das forças dos EUA passasse do confronto para o treinamento de iraquianos, a fim de que as unidades de combate pudessem ser retiradas até o início de 2008.

Na prática, o relatório do grupo bipartidário - presidido pelo ex-secretário de Estado republicano James Baker e pelo ex-congressista democrata Lee Hamilton - foi uma mensagem urgente da velha estrutura de poder de Washington para que o governo Bush mudasse o rumo de sua política no Iraque. Mas Bush não adotou nenhuma das recomendações importantes, embora grupos bipartidários na Câmara e no Senado tenham apresentado recentemente projetos de lei que as transformariam em políticas oficiais dos EUA.

Em vez disso, o presidente anunciou em janeiro que enviaria mais soldados ao Iraque como parte de um 'reforço' que, segundo ele, levaria à vitória que até então escapara das forças dos EUA.

Bush e o general David Petraeus, comandante das tropas americanas no Iraque, vêm afirmando repetidamente que não existe solução militar para o país e a guerra sectária e a insurgência só poderão ser detidas pelo governo iraquiano.

A descrição de Hayden do governo disfuncional iraquiano lança alguma luz sobre a análise que a comunidade de inteligência fez de Maliki e da situação no terreno. Cinco dias antes do testemunho de Hayden, o conselheiro de Segurança Nacional, Stephen Hadley, havia escrito um memorando a Bush questionando a capacidade de Maliki de controlar a violência no Iraque, mas sua avaliação não fora tão sombria quanto a do diretor da CIA.

A declaração otimista do próprio Bush aos membros do grupo de estudos não refletiu o ponto de vista do diretor do serviço secreto. Mas a declaração de outra funcionária do governo americano entrevistada pelo painel no mesmo dia - a secretária de Estado, Condoleezza Rice - levou em conta a opinião de Hayden. Quando a ex-juíza da Suprema Corte Sandra Day O'Connor, integrante do painel, perguntou se a secretária sabia da análise pessimista da CIA sobre o Iraque, ela respondeu: 'Sabemos da avaliação sombria.' Mas logo acrescentou: 'Não é uma situação sem esperança.'

Um porta-voz da CIA, Mark Mansfield, contestou essa versão do testemunho de Hayden aos membros do grupo de estudos. ¿Isso não reflete com precisão o que o diretor Hayden disse na reunião nem reflete sua opinião, na época ou hoje¿, afirmou. Segundo um importante funcionário de inteligência, o diretor da CIA disse ao painel que sua avaliação era ¿sombria¿. O funcionário também admitiu que Hayden usou o termo ¿irreversível¿, mas insistiu que ele disse, na verdade, que ¿a situação sobre a governabilidade no Iraque, provavelmente, era irreversível no curto prazo, por causa das visões de mundo de vários dos líderes do governo (iraquiano), condicionadas por um filtro sectário e um governo organizado segundo seu equilíbrio étnico e religioso, e não segundo sua competência ou capacidade¿.

Mas outro funcionário de inteligência de alto escalão confirmou a essência e os detalhes da avaliação de Hayden, afirmando que os dados de inteligência vindos do Iraque neste mês mostram que a capacidade do governo de Maliki de administrar o país continua ¿terrível¿.

Hayden, de 62 anos, brigadeiro e funcionário de inteligência de carreira, é famoso pela franqueza de seus relatos. Desde 2003, a CIA, que mantém mais de 500 funcionários no Iraque ajudando na coleta e análise de informações, tem sido a agência de inteligência americana que oferece a visão mais pessimista sobre a situação no país.

Em depoimento à Comissão das Forças Armadas do Senado dois dias depois da reunião com o grupo de estudos, Hayden foi mais cauteloso nas conclusões. Disse que havia problemas graves no Iraque, mas o governo estava ¿funcionando¿.

O ex-secretário da Defesa William Perry, um dos cinco democratas no Grupo de Estudos sobre o Iraque, confirmou que Hayden lhes disse que o governo iraquiano parecia não ter salvação. ¿Era o que ouvíamos em toda parte¿, contou Perry. ¿Ele só deixou um pouco mais claro e explícito.¿ O¿Connor, uma republicana, também confirmou a avaliação de Hayden. Ela disse que não concordou com sua conclusão de que o quadro era irreversível, mas acrescentou que está pessimista.

¿É uma situação terrível¿, afirmou ela. ¿Não creio que tenha melhorado. É de partir o coração. (...) Civis iraquianos estão morrendo, soldados americanos estão morrendo. Até agora, aparentemente, não conseguimos nenhum tipo de segurança.¿ Os membros do grupo de estudos chegaram à Casa Branca e entrevistaram durante todo o dia quase todos os funcionários importantes envolvidos na política para o Iraque. Além de Hayden, Bush e Condoleezza, eles também interrogaram Rumsfeld; o general Peter Pace, então chefe do Estado-Maior Conjunto; Zalmay Khalilzad, então embaixador dos EUA no Iraque; e, em conexão com Bagdá via satélite, o general George W. Casey Jr., então o principal comandante americano no país.

Bush foi acompanhado na entrevista pelo vice-presidente Dick Cheney, pelo chefe de gabinete da Casa Branca, Joshua Bolten, e por Hadley. No encontro de uma hora com os membros do grupo de estudos, Hayden descreveu uma situação na qual o governo iraquiano não estava disposto ou não conseguiria controlar a violência que consumia o país e questionou se valia a pena fortalecer suas unidades de segurança. Para ele, os EUA estavam diante de opções ruins.

¿Nossa retirada do Iraque agravaria a situação¿, disse Hayden. ¿Nossa permanência pode não melhorar a situação. Nossa abordagem atual, sem modificação, não vai melhorá-la.¿ Segundo o registro escrito e outros participantes da reunião, a certa altura Hayden comparou a situação no Iraque a uma maratona. Ele afirmou que, em toda corrida, chega um momento em que o corredor sabe que pode completar a prova. O general disse que não conseguia enxergar esse momento no futuro do Iraque.

Vários generais americanos já haviam dito ao grupo de estudos que o sucesso no Iraque não ocorreria sem a reconciliação nacional entre sunitas e xiitas. Hayden concordou: ¿A identidade iraquiana está calada. A identidade sunita ou xiita fica em primeiro plano.¿ Mas ele não enxergava o fim dos assassinatos sectários.

¿Dado o nível da violência descontrolada¿, disse Hayden, ¿o máximo que podemos fazer é conter os excessos e preservar a possibilidade de reconciliação no futuro.¿ O diretor da CIA comparou a situação no Iraque à guerra prolongada nos Bálcãs. ¿Na Bósnia, os inimigos lutaram até o esgotamento¿, afirmou, sugerindo que o mesmo cenário poderia ocorrer no Iraque. ¿Talvez eles precisem simplesmente lutar até o esgotamento.¿ Hayden classificou o que considerava as principais fontes de violência nessa ordem: a insurgência, o conflito sectário, a criminalidade, a anarquia geral e, finalmente, a Al-Qaeda. Embora o general tenha citado a Al-Qaeda como a quinta ameaça mais urgente, apresenta o grupo regularmente como a principal ameaça.

Membros do grupo de estudos disseram que a dura avaliação de Hayden sobre o governo iraquiano combinou com o que eles haviam escutado em setembro, durante uma visita ao Iraque. Lá, eles se reuniram com um importante funcionário da CIA que sustentava uma visão igualmente desanimadora. ¿Maliki não foi escolha de ninguém¿, disse o funcionário, segundo anotações daquela reunião. ¿Seu nome surgiu na última hora. Ele não tem base de poder real no país ou no Parlamento. Não podemos esperar muito dele.¿ Diante das ameaças e da violência, declarou o funcionário, era surpreendente que os empregados do governo iraquiano aparecessem para trabalhar.

¿Continuamos impressionados com o fato de os iraquianos aceitarem tais níveis de violência¿, disse ele ao grupo de estudos. ¿Maliki não vê problema em dois carros-bomba por dia, 100 mortos por dia. É sustentável e seu governo pode sobreviver.¿ Mas o próprio governo era responsável por parte da violência, afirmou o funcionário da CIA. ¿O Ministério do Interior é formado por esquadrões da morte fardados, carcereiros e salas de tortura¿, disse ele. ¿Seus fundos são constantemente desviados.¿ Em seu testemunho, Hayden disse que os Estados Unidos tinham divergências fundamentais com o governo xiita de Maliki sobre algumas das questões mais básicas do Iraque.

¿Nós e o governo iraquiano não concordamos sobre quem é o inimigo¿, afirmou Hayden, segundo o registro escrito. ¿Para todos os principais líderes do governo iraquiano, os baathistas são a fonte do mal. Há um de tocaia em cada esquina.¿ Vários participantes da entrevista disseram que Hayden estava espantado com o nível de violência no país, mas cético quanto à capacidade das forças iraquianas - militares ou policiais - de fazer qualquer coisa a respeito.

¿É legítimo perguntar se o reforço das unidades de segurança iraquianas ajuda ou atrapalha quando elas são vistas como um elemento predatório¿, disse ele. ¿O reforço das unidades de segurança iraquianas não é exclusivamente bom. Esse julgamento aplica-se sem restrições à polícia.¿ Numa notícia relativamente positiva, ele afirmou que o treinamento do Exército iraquiano apresentara resultados melhores que o da polícia. ¿O Exército é desigual¿, disse ele, acrescentando: ¿Desigual, neste caso, é bom.¿ A frustração de Hayden com Maliki contextualiza a contínua pressão de Washington sobre o líder iraquiano para que ele obtenha um acordo político entre sunitas e xiitas.

Na reunião de novembro, Condoleezza descreveu suas discussões com Maliki, nas quais lhe comunicou com firmeza a importância do progresso na unidade nacional e na reconciliação. Ela disse ter advertido a ele: ¿Em breve, todos vocês estarão pendurados em postes se não trabalharem juntos.¿