Título: Qualidade de produtos desafia a China
Autor: Kahn, Joseph
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/07/2007, Economia, p. B14

País pode se espelhar nos EUA de cem anos atrás para solucionar problemas

Um fertilizante falsificado destrói plantações. As prateleiras das lojas estão cheias de ovos podres desodorizados e glucose química é vendida como mel. As exportações despencaram quando os regulamentadores europeus descobriram poderosas bactérias na carne industrializada.

Esses problemas de qualidade levaram um indolente governo americano a tornar mais rigorosa a regulamentação de alimentos e medicamentos há 101 anos, quando o presidente Theodore Roosevelt assinou a lei que criou a Food and Drug Administration.

Como a economia em processo de industrialização dos Estados Unidos, há um século, a China está fortalecida por empreendedores entusiastas que às vezes agem como piratas. Ambos os países foram vítimas de epidemias de falsificações fatais e ambos tiveram responsáveis pela regulamentação muito inadequados, corruptos ou ineficientes para fazer muito sobre o problema.

A questão agora é se as fábricas chinesas, flagradas exportando componentes farmacêuticos venenosos, mariscos imundos, rações para animais de estimação adulteradas e pneus defeituosos podem reagir a tempo de impedir mais estragos à sua reputação.

Ou, em outras palavras, será que os últimos incidentes são suficientes para empurrar a China na direção da sua própria Era Progressista? A resposta, dizem pessoas que têm estudado o sistema regulamentador do país, é um sim com ressalvas. Antes de mais nada, dizem eles, o governo chinês precisa assumir uma nova atitude em relação à inspeção e ao policiamento de sua freqüentemente indisciplinada economia.

Os exportadores chineses venderam quase US$ 1 trilhão em mercadorias para o exterior no ano passado. Segundo a maioria dos indicadores, as mercadorias falsificadas ou de qualidade inferior representaram uma minúscula fração desse total. A série de escândalos relativos à segurança dos produtos, porém, é reflexo de um persistente espírito fraudulento oculto na economia chinesa que a extensa cobertura da mídia, novas leis e a aplicação mais rigorosa das leis ainda não eliminaram.

O governo de Roosevelt teve de superar a oposição ideológica para regulamentar o comércio do setor privado. A China tem um desafio político diferente - seu governo autoritário, embora controlado por um único partido, tem lutado para desenvolver um sistema de regulamentação moderno e unificado que possa supervisionar uma economia de mercado dinâmica.

'A competição dentro da nossa burocracia tem resultado na difusão do poder e numa tendência a eximir-se das responsabilidades', diz Mao Shoulong, um especialista em política pública da Universidade do Povo de Pequim. 'Reprimir violentamente os criminosos individualmente não resolve o problema. Precisamos consertar o sistema inteiro.'

Lapsos na segurança são um grave efeito colateral dos esforços graduais e ainda incompletos da China para separar a política dos negócios. Para desencadear o crescimento econômico da década de 1980, autoridades do primeiro escalão concederam mais poderes às autoridades locais. A meta era solapar os conservadores socialistas do governo central que exerciam controles rígidos. O poder regulamentador também foi disseminado.

O crescimento foi às alturas. Empresários, investidores estrangeiros e camponeses assumiram um papel dominante na produção. Mas a segurança, assim como os padrões de mão-de-obra e de defesa do meio ambiente, ficou de lado.

Dezenas de pessoas morreram depois de ingerirem baijiu (vinho de arroz) de fundo de quintal que substituiu a coisa verdadeira por álcool barato de uso industrial. Condimentos usados como tempero para pratos cozidos à mesa continham parafina. O macarrão vermicelli tinha um agente cancerígeno, e o mesmo ocorreu com o popular corante chamado Vermelho Sudão, que era usado pela Kentucky Fried Chicken (KFC) e pela Heinz (fabricante do catchup mais famoso do mundo), entre outras empresas.

Em 2003, centenas de pais da Província de Liaoning ficaram tão frustrados com a reação do governo local a uma onda de envenenamentos por alimentos na lanchonete das escolas que obstruíram um estrada de ferro local.

Talvez o caso mais escandaloso tenha ocorrido em 2004, quando pequenas fábricas da região central da China produziram um leite em pó para bebês barato, mas sem proteínas. Cerca de 50 bebês da Província de Anhui morreram de desnutrição, pois os pais e alguns médicos confundiram os sintomas - inchaço no rosto e nas mãos - com um sinal de superalimentação.

Desde então, os esforços para regulamentação têm sido fortalecidos, mas freqüentemente com resultados limitados. Apenas na esfera de alimentos e medicamentos há 17 órgãos governamentais cujas responsabilidades se sobrepõem, e eles ciumentamente defendem seu poder. O Ministério da Saúde, o Ministério da Agricultura, a Administração Estatal de Indústria e Comércio e a Administração Geral de Supervisão e Inspeção de Qualidade e Quarentena competem por papéis de monitoramento.

O motivo é que querem arrecadar taxas de licenciamento e multas para complementar seus orçamentos miseráveis. Não menos significativo é o fato de que os fiscais e seus chefes poderão arrecadar propinas em troca de favores.

'A coisa virou uma guerra de territórios entre os departamentos', disse Roger Skinner, um regulamentador britânico aposentado que prestou consultoria para o governo chinês no aprimoramento da segurança alimentar em nome da Organização Mundial da Saúde (OMS). 'Se eles não conseguirem fazer com que a lei seja cumprida, perderão receita.'

Compreendendo que tinham criado uma confusão de órgãos governamentais concorrentes entre si, líderes do primeiro escalão criaram, em 2003, a State Food and Drug Administration, que recebeu este nome por causa do seu equivalente americano e que, no papel, tinha 'autoridade superministerial' para coordenar todos os outros órgãos que monitoravam a esfera politicamente sensível de alimentos e medicamentos.

A agência, porém, logo caiu vítima da luta interna e perdeu prestígio em 2005, quando seu primeiro diretor, Zheng Xiaoyu, foi obrigado a se demitir. Mais tarde, ele foi condenado por aceitar suborno para acelerar a aprovação de medicamentos. Depois que a mais recente série de escândalos relacionados com a segurança irrompeu, Zheng foi sentenciado à morte.

Responsabilidades mal demarcadas e poderes investigativos fracos explicam em parte por que os responsáveis pela regulamentação da China deram pouca ajuda aos seus colegas americanos no exemplo mais fatal dos problemas de segurança chineses que chegaram às costas estrangeiras.

Em 1997 e novamente no ano passado, os americanos buscaram informações sobre as empresas químicas chinesas que tinham exportado glicerina falsificada, contendo o venenoso dietileno glicol, que foi parar nos produtos médicos no Haiti e no Panamá. Em ambos os países, dezenas de pessoas que consumiram os produtos morreram.

O dietileno glicol era manufaturado por fábricas chinesas de produtos químicos, mas acabou em produtos farmacêuticos. Isso quer dizer que caiu dentro de um vácuo regulatório. Nenhum órgão quis assumir o controle. 'Francamente, existe o 'passar adiante' entre os ministérios', disse Skinner, o regulamentador britânico. 'Um ministro diz: 'Não era minha tarefa fazer isso, isso era de outro ministério'.'

Mesmo assim, muitos especialistas argumentam que os excessos capitalistas que têm prosperado durante a transição econômica da China já desencadearam uma ação corretiva, não totalmente diferente das mudanças da Era Progressista dos Estados Unidos.

O presidente Hu Jintao estabeleceu uma série de medidas sob o slogan 'desenvolvimento científico', que visa a fortalecer os reguladores centrais e planejadores econômicos, reduzir os abusos contra os trabalhadores de baixo salário e proteger o meio ambiente degradado.

Ele tem encontrado muita resistência, e não se sabe o quanto vai recuar em relação ao modelo de desenvolvimento de rápido crescimento da China.

Embora algumas forças políticas e corporativas digam que a China precisa ficar mais rica antes que possa tratar os problemas de mão-de-obra e de proteção do meio ambiente, são poucos os interesses adquiridos que defendem os direitos das fábricas fajutas de injetar veneno nos medicamentos ou fazer leite em pó infantil sem proteínas.

Com a reputação da China tendo levado um golpe nos Estados Unidos, a resistência para tornar os padrões mais rigorosos parece que tende a fenecer. 'Creio que os líderes chineses estão profundamente alarmados', disse Dali Yang, um especialista em governo chinês que trabalha para o East Asian Institute em Cingapura. 'Eles não querem permitir que uma minúscula porcentagem de más exportações prejudique a reputação deles.'

Yang disse que as grandes cidades chinesas já demonstraram que podem fazer um melhor trabalho de monitoramento da segurança de alimentos e medicamentos do que as localidades menos desenvolvidas e as áreas rurais. Cadeias de varejo e de restaurantes e fabricantes de marcas de grife também têm conquistado parcelas do mercados em detrimento das operações em pequena escala, em parte porque os consumidores chineses querem evitar mercadorias falsificadas ou perigosas.

A mídia controlada pelo Estado têm dado uma liberdade incomum para expor mercadorias de qualidade duvidosa. Um dos programas mais populares da Televisão Central Chinesa, o Relatório Semanal sobre a Qualidade, investiga acidentes, envenenamentos e falsificações baratas.

Entre os tópicos recentes estão capacete de motocicleta com defeitos, vacinas contra raiva falsificadas, pneus malfeitos e rações animais tóxicas.

Mesmo nos Estados Unidos, a FDA, que a China considera um modelo de poder regulatório, tem problemas que podem soar familiares em Pequim.

Seus funcionários reclamam dos orçamentos apertados e da concorrência com 11 outros órgãos regulatórios federais, que tem tornado mais difícil a fiscalização do suprimento de alimentos.

E embora o órgão tenha sido criado na urgência regulatória de 1906, demorou 55 anos, até o governo Kennedy, para que o FDA adquirisse os poderes que queria para assegurar um fornecimento seguro de medicamentos.

'Eu ficaria surpreso se a China levasse esse tempo todo', disse Yang.