Título: Monumental crise de autoridade
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/07/2007, Espaço Aberto, p. A2

A maior tragédia aérea da ¿História desse país¿, na seqüência do maior número de acidentes de aviação, acontece no bojo da maior crise de autoridade do atual governo. A gestão sob o comando de Luiz Inácio Lula da Silva, autoproclamada a mais ¿histórica¿ na esfera de recordes de bondades e mudanças, consegue ser o contraponto na pontuação de situações caóticas, que denotam muita desorganização na ação governamental. Até parece que estamos sob uma monarquia tropicalista, conduzida por um soberano que reina festivamente, mas não governa. Não se veja nessa inferência insinuação de fragilidade do mandatário ou menosprezo ao simbolismo por ele encarnado. O homem é um ícone. Mas seu perfil foge ao enquadramento imposto pela moderna técnica da administração, que abriga uma nomenclatura pontilhada de conceitos como eficácia, produtividade, controles, maximização e efetividade. Luiz Inácio gosta dos piques e repiques de palanque e se deixa levar pela emoção que se renova no encontro com as massas, de onde tira a vitamina para fruir as glórias de habitante do Olimpo.

A facilidade com que o presidente se desvencilha dos intrincados laços de crises intermitentes realça o caráter majestático de um estilo voltado para alimentar duas tendências que, de maneira dicotômica, atuam no seio da administração. De um lado, a luta de organismos e grupos para alcançarem maior grau de autonomia e, de outro, a batalha do comando central para unir setores dispersos. O Ministério é um arquipélago de grandes e pequenas ilhas, cuja integração fica por conta do núcleo palaciano, chefiado pela ministra Dilma Rousseff com a assessoria do Ministério da Articulação Institucional. Se as colônias não conseguem independência, a matriz tem dificuldades de colar as partes no todo. E o rei? Ora, sua majestade não tem apetência para ser soldador. Por isso, na ocorrência de catástrofes, o arquipélago fica sem direção. Para salvar as aparências, vale-se da liturgia. O que fazer para dar uma satisfação à sociedade ante o maior desastre da aviação brasileira? Decretar luto por três dias, como se isso bastasse para amenizar as dores das famílias dos mortos e atenuar a perplexidade social. O espetáculo inclui, ainda, um gabinete de crise, a indicar que o governo entrou de plantão para enxugar as lágrimas e consolar os filhos que chamam pelos pais. Uma patacoada.

Do alto da onipotência, o presidente não percebe que sua palavra perde letras quando trafega nos labirintos da burocracia. E que sua voz, que ecoa nos ambientes festivos, perde força quando transita pela ordem imperativa: ¿Se vocês não derem uma solução, eu vou dar.¿ Isso ele disse em 1º de novembro, depois de uma semana de apagão aéreo, de cuja ocorrência, aliás, fora avisado desde 2003 pelo então ministro da Defesa, José Viegas. Dias depois, exigia uma solução em 48 horas para resolver a crise financeira do Incor. Até hoje. A vontade de Lula se limita ao ¿querias¿, bordão humorístico de Jô Soares. Esse tal Ministério da Defesa é incapaz de dizer a que veio. A Agência Nacional da Aviação Civil não funciona. Cabe-lhe adotar medidas para desenvolver a aviação civil e a infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária e estabelecer padrões de segurança de vôo. Exemplo de desgoverno é o Aeroporto de Congonhas, que suporta 12 milhões de passageiros/ano, mas acolhe 20 milhões. Tudo por conta da politicagem que toma conta dos órgãos e da ganância das companhias. A Infraero, como se divulga, é objeto de muitas denúncias de corrupção.

Gastar no pavoneamento de aeroportos dá mais lucro que melhorar pistas. A Aeronáutica, desde o motim dos sargentos no início do apagão aéreo, foi desautorizada por Lula, que, arrependido, depois deu ordens para a Força punir os rebeldes. Era tarde. O presidente puxara o tapete da autoridade. Se o chefe do Estado detém o status de personificar a Nação, de ser o supremo mandatário e gestor, de exigir que cada Poder cumpra sua função, sem se inibir nem extrapolar, precisa assumir o mando. Se não o fizer, o país, desgovernado, entra em caos. É o que se vê na malha rodoviária, nos portos e no sistema aéreo. Lula não tem apetência para exercer a autoridade. E da responsabilidade procura fugir. Costuma cobrir-se com o véu de distanciamento das crises.

Yeliu Tshutsaid, conselheiro de um grande estrategista da organização militar, Genghis Khan, costumava dizer: ¿Pode-se conquistar um reino no lombo de um cavalo, mas é impossível governá-lo sobre a sela.¿ Lula é um comandante que governa sentado na montaria. Pois é assim que se entende esse ludismo campestre que abriga parlatórios, perorações intermináveis, eventos festivos e uma Corte que lhe fecha a visão real do País. Assim pratica o poder. Karl von Clausewitz, o autor do clássico Da Guerra, defendia a tese de que a atitude de quem exerce autoridade condiciona as atitudes de seus subordinados. A inércia que paralisa áreas vitais do País é fruto da incompetência de administradores amorfos e reativos. Basta ver as Parcerias Público-Privadas, programa com que o governo festejava a abertura de largos horizontes no campo do empreendedorismo. Está ¿indo pras cucuias¿. O festejado Programa de Aceleração do Crescimento anda lerdo. Mas quando se aponta o piloto automático como o grande dirigente do País, na esteira da situação internacional, os exércitos petistas ensarilham armas. Não aceitam a idéia de que o Brasil se deita no leito da estabilidade por manter a coluna vertebral em eixos fincados em passado recente.

Estupefata, a sociedade refugia-se no pavor e na contemplação de tragédias anunciadas, cada vez mais freqüentes. Tem consciência de que, mais cedo ou mais tarde, novas cenas tétricas se repetirão, sob a liturgia de comitês de crise e a estampa de horror de amigos, órfãos e parentes de quem partiu sem dizer adeus.

Sua majestade pode proclamar, sem medo de errar: ¿Nunca antes na História desse país se viu tanto decreto de luto oficial por três dias.¿

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br