Título: Lentidão da Justiça faz pedidos de indenização migrarem para os EUA
Autor: Nunomura, Eduardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/07/2007, Nacional, p. A4

Quando podem, brasileiros recorrem ao Judiciário americano, onde acordos prévios até dispensam julgamento

¿Não sou especialista em pedir indenização pela morte de um filho, mas a seguradora é especializada em pagar o mínimo¿, alerta aos parentes de vítimas do vôo 3054 o professor universitário Fernando Lobo Vaz de Mello. Ele era pai de Alexandre, um consultor que morreu aos 27 anos na queda do Fokker-100 da TAM, em 1996. Até hoje ele e a mulher, Maria Conceição Magalhães, não receberam a reparação a que têm direito. Jamais imaginariam que outros dois graves acidentes aéreos ocorreriam desde então.

O caso da família Vaz de Mello começou nos Estados Unidos, mas voltou ao País num acerto ocorrido por lá. A empresa Northrop, fabricante do freio reverso (causa do acidente), deveria pagar às famílias por aqui, onde o trâmite processual é outro. A seguradora da TAM, Unibanco Seguros, tem recorrido em todas as ocasiões dos que moveram ação no Brasil. ¿A Justiça brasileira se permite atrasar e isso só beneficia o infrator¿, critica o professor.

A lentidão judicial é fator determinante para brasileiros recorrerem, quando podem, à Justiça americana. A do País depende do papel e do barbante. A dos Estados Unidos requer processos virtuais e banda larga. Uma convive com ações que se arrastam há décadas e a outra se dá ao luxo de ver casos nem serem julgados com acordos prévios.

O contraste com a Justiça americana se reflete em outros casos, como o do casal Hernandes, da Igreja Renascer. Para evitar ficar presos por dez anos, Sonia e Estevam Hernandes confessaram os crimes de contrabando de divisas e conspiração de contrabando de divisas. Eles tentaram entrar com US$ 56,5 mil, mas só declararam US$ 10 mil. Esconderam o dinheiro em uma Bíblia e até na mochila do filho. Foram presos em 9 de janeiro no aeroporto de Miami. A polícia alfandegária havia sido alertada pelo promotor Arthur Lemos, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado. Eles poderiam estar entrando com dinheiro não-declarado.

Por que o casal fechou um acordo e confessou os crimes, se aqui sua defesa dizia que eram inocentes? Porque nos Estados Unidos o combate aos crimes de lavagem de dinheiro permite o confisco dos bens. Com uma mansão em Boca Raton e outras propriedades em solo americano, eles sabiam que tinham mais o que perder. ¿A Justiça americana é direcionada pela economia e rapidez¿, explica o promotor Lemos. ¿No Brasil, muitas vezes nos inquéritos pedimos os bens, mas eles não são confiscados. Não é prioridade.¿ Num prazo de sete meses e sete dias da prisão até a sentença final, saberão quanto tempo ainda terão de permanecer presos, mas evitarão ter de pagar até US$ 1 milhão de multa.

CRIMES DIFERENTES

No País, não há o crime de contrabando de divisas, já que a entrada e saída de moeda é livre, lembra o juiz federal Sergio Fernando Moro, especialista em crimes de lavagem de dinheiro. A Lei 9.069/95, em seu artigo 65, determina que a pessoa que entra no Brasil declare se traz mais de R$ 10 mil. Se não fizer isso, fica sujeito a uma infração administrativa e ao crime de falsidade ideológica. Nos últimos 27 meses, houve 30 prisões e o confisco de R$ 2,4 milhões, segundo a Receita Federal.

A diferença fundamental entre os Judiciários do Brasil e dos Estados Unidos está no júri, explica Luiz Olavo Baptista, professor de direito internacional da Universidade de São Paulo. Nos tribunais brasileiros, o júri é constituído de sete pessoas que respondem a quesitos predefinidos pelo juiz. Nos americanos, são 12 pessoas com poder decisório. Estes definem se houve a violação de um direito e até a compensação financeira. Em alguns casos, é elevadíssima. ¿Os jurados americanos é que fixam a indenização. Eles vêem quanto o sujeito ou a empresa tem no bolso.¿ Nessas circunstâncias, é preferível fechar um acordo antes de o caso ser levado a um julgamento.

Cada Estado americano possui uma corte com plena autonomia para decidir e os magistrados podem recusar casos sem importância. Aqui, até briga de vizinhos vai parar num fórum e não é impossível que venha a ser discutido por ministros da Justiça Federal. Os parlamentares americanos criam leis estaduais próprias, enquanto a codificação das leis brasileiras fica sob responsabilidade última do Congresso Nacional. Na Califórnia vale a pena de morte, mas em Nova York, não.

No Brasil, quando se decide por uma indenização por morte em acidente, a aritmética é simplificada. Salvo raras exceções, multiplica-se o último salário da vítima até a aposentadoria. Os americanos possuem uma tabela que projeta a ascensão profissional. A pessoa morre gerente, mas poderia virar um diretor. ¿Aqui não se passa de uma quantia, porque os tribunais acabam tabelando os valores¿, diz o advogado Leonardo Amarante, que entrou nos Estados Unidos com 53 ações para famílias do caso Gol.

A partir da queda do Fokker-100 da TAM parentes de vítimas passaram a pedir indenizações nos Estados Unidos. Foi a solução mais acertada para 65 das 99 famílias, a maioria com acordos já fechados antes mesmo de um julgamento e num prazo de cinco anos. Receberam entre US$ 500 mil e US$ 1,5 milhão. Quem optou por decidir o caso no País, a compensação, anos depois, ficou entre R$ 500 mil e R$ 800 mil. E em algumas situações, como as dos Vaz de Mello, a espera não acabou.

¿Estamos há anos-luz dos americanos em agilidade e seriedade em termos de processos indenizatórios¿, afirma Sandra Assali, presidente da associação de parentes de vítimas do acidente. Com o vôo 3054, a TAM promete uma postura diferente da de 1996. Deve buscar acordos no Brasil, evitando que os processos cheguem às cortes americanas.

A própria Justiça americana criou mecanismos para evitar que os Estados Unidos se tornassem a meca dos casos de indenização. O principal é a figura do fórum não-conveniente. O processo só segue se há americanos envolvidos, empresas ou vítimas. O acidente do vôo 1907 com o Boeing da Gol e o Legacy, em setembro, é um exemplo. Envolve empresa e pilotos americanos. Já teve a primeira audiência em dezembro num tribunal de Nova York. No passado, acidentes aéreos se decidiam no Brasil.

DÉCADAS DE ESPERA

Quarenta e dois anos, cinco meses e vinte e sete dias e nem sequer uma remota previsão de quando o processo 558.048/1965 chegará ao fim. Essa é a realidade de Dora Leuenroth, que perdeu o marido, Ivan Meira, num acidente em 26 de novembro de 1962. Numa ponte aérea São Paulo-Rio, o publicitário de 30 anos voltava para casa e levava brinquedos para as filhas Gabriella, Jessica e Anna Pierinna, a mais velha com 3 anos. Nunca pôde entregá-los. O Scandia da Vasp chocou-se com um Cessna e 27 pessoas morreram.

As quatro mulheres se viram sós e viram o Brasil democrático passar por uma ditadura militar para voltar, nos anos 1980, ao Estado de direito. Depois de 14 presidentes da República, 11 Copas do Mundo e 4 papas, a ação de indenização da família Leuenroth encontra-se estacionada na 1ª instância, na 14ª Vara Cível do Fórum Central João Mendes Júnior.

A ação de indenização, que era estadual, foi transferida para a Justiça Federal, quando esta foi criada em 1968. No ano seguinte, a família Leuenroth Meira ganhou em 1ª instância, com a condenação só do dono do Cessna. Houve apelação para o Tribunal Federal de Recursos (TFR), que incluiu a Vasp entre os réus. Anos depois o TFR foi extinto e os órgãos que o sucederam, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, trataram o processo como batata quente. Foram nove julgamentos por competência e só dois pelo mérito. Dora e as filhas ganharam em todos, com exceção de um, o último. A Vasp ajuizou uma ação rescisória questionando a decisão do TFR. O STJ anulou o processo.

¿Estou deixando um País para meus netos onde não há moral, nem leis que são respeitadas¿, desabafa Dora, que ficou viúva aos 32 anos. A ação hoje supera os R$ 30 milhões. ¿Essa verdadeira negação da Justiça se deve à balbúrdia processual e legislativa no Brasil¿, diz o advogado da família Ruy Ludolf Ribeiro, de 66 anos. ¿Daqui a pouco sou eu que vou morrer.¿ Não é uma preocupação tola. Outros três advogados que o antecederam já morreram no decorrer do processo.