Título: Iraque: desastre completo e evitável
Autor: Garton Ash, Timothy
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/07/2007, Internacional, p. A14
O Iraque acabou. O Iraque ainda não começou. São duas conclusões do debate americano sobre o conflito que domina a mídia do país em detrimento de quase todos os outros assuntos internacionais.
O Iraque acabou na medida em que, na opinião dos americanos, os soldados dos EUA deveriam se retirar. Segundo uma pesquisa Gallup, 71% da população defende a retirada de todos os soldados dos EUA do Iraque até 1.º de abril de 2008, ¿à exceção de um número limitado que seria envolvido em esforços antiterrorismo¿. O analista político da CNN Bill Schneider observa que, no final da Guerra do Vietnã, a atitude do público americano poderia ser resumida pela expressão ¿vencer ou ir embora¿. Para ele, o mesmo aplica-se ao Iraque. Apesar das justificativas desesperadas do presidente Bush, a maioria dos americanos já concluiu que seu país não está vencendo. Portanto, é hora de ir embora.
Como este país é uma democracia, seus representantes eleitos vão para onde o povo os leva. Seja qual for o resultado do jogo de posições no Congresso, ninguém em Washington duvida da direção do vento. Publicamente, ainda há uma divergência segundo as linhas partidárias, mas líderes republicanos já rompem fileiras para apresentar seus próprios planos de redução gradual das tropas.
Bush diz estar decidido a entregar ao comandante americano no Iraque, general David Petraeus, a quantidade de soldados que ele pedir ao apresentar seu relatório em setembro. E aspirantes presidenciais republicanos ainda falam duro. No entanto, o mais aberto defensor da idéia de permanecer no Iraque, John McCain, vê sua campanha desmoronar. Mesmo se o próximo presidente for um republicano linha-dura, todas as apostas atuais de Washington terão de ser repensadas. Afinal, é isso que o povo deseja - e as tropas americanas também. Numa pesquisa Zogby realizada no ano passado, 72% dos soldados no Iraque disseram querer ir para casa em 2006.
O veredicto é claro. Indagados sobre quem seria o culpado pela atual situação, 40% dos entrevistados pela Newsweek apontaram a Casa Branca e 13%, o Congresso. Numa pesquisa para a CNN, 54% disseram que a ação dos EUA no Iraque não é moralmente justificável. Numa sondagem realizada para a CBS, 51% concordaram com a avaliação de que o conflito está aumentando, e não diminuindo, a ameaça terrorista. Se os americanos um dia foram cegos, agora estão enxergando. Apesar da abundância da fé, esta nação funda-se na realidade.
Portanto, o Iraque acabou. Mas o Iraque ainda não começou. Não começou em termos das conseqüências para o próprio Iraque, para o Oriente Médio e para a política externa dos EUA. A conseqüência mais provável da rápida retirada do Iraque é um novo banho de sangue, com ondas de refugiados e o desmembramento do país. Cerca de 2 milhões de iraquianos já fugiram pelas fronteiras e mais de 2 milhões estão deslocados internamente. Agora, um cuidadoso e doloroso estudo do Instituto Brookings argumenta que o menor dos males seria o que seus autores chamam de ¿divisão moderada¿, envolvendo a transferência pacífica e voluntária de 2 a 5 milhões de iraquianos para regiões divididas entre curdos, sunitas e xiitas.
Num artigo para a revista online Open Democracy, o especialista em Oriente Médio Fred Halliday descreve algumas conseqüências regionais. Além da destruição do Estado iraquiano, a lista inclui a revitalização do islamismo militante e o reforço do apelo internacional da marca Al-Qaeda; a eclosão, pela primeira vez na história moderna, da guerra entre sunitas e xiitas, o fortalecimento de um Irã com apetite nuclear; e uma nova rivalidade regional envolvendo, de um lado, a República Islâmica iraniana e seus aliados, como Síria, Hezbollah e Hamas, e, de outro, a Arábia Saudita, Egito e Jordânia.
Para os próprios EUA, o mundo é hoje um lugar mais hostil. No fim de 2002, a Al-Qaeda no Afeganistão havia sido praticamente destruída e não existia Al-Qaeda no Iraque. Em 2007, existe uma Al-Qaeda no Iraque, partes da Al-Qaeda voltaram ao Afeganistão e grupelhos inspirados da Al-Qaeda brotam em outros lugares, notavelmente na Europa. O plano de Osama bin Laden era fazer com que os EUA exagerassem na reação e tentassem fazer mais do que podiam. Com a invasão do Iraque, Bush caiu na armadilha.
Os EUA provavelmente ainda não despertaram totalmente para o fato aterrorizante de que, depois de um longo período em que o lema de seus militares foi ¿Vietnã nunca mais¿, o país está diante de um novo Vietnã. Há muitas diferenças importantes, é claro, mas o resultado básico é similar: a força militar mais poderosa do mundo não consegue atingir seus objetivos estratégicos e, no fim, é derrotada politicamente por um adversário econômica e tecnologicamente inferior.
Mesmo que não haja cenas de helicópteros retirando americanos do teto da embaixada em Bagdá, certamente circularão algumas imagens de humilhação nacional enquanto os EUA lutarem para tirar seus soldados e todo o equipamento pesado que despejaram no Iraque. Abu Ghraib e Guantánamo causaram danos terríveis à reputação dos EUA e esta derrota convencerá mais pessoas ao redor do mundo de que eles não são tão poderosos assim.
Na História, as conseqüências involuntárias são freqüentemente as mais importantes. Ainda não conhecemos as conseqüências involuntárias do Iraque no longo prazo. Talvez haja um raio de esperança escondido em algum lugar. No entanto, até onde o olho humano pode enxergar, as prováveis conseqüências vão do ruim ao catastrófico. Pensando nos 25 anos em que escrevi sobre assuntos internacionais, não consigo me lembrar de nenhum desastre provocado pelo homem que fosse tão completo e tão evitável quanto este.