Título: Dividida, Turquia decide seu futuro
Autor: Dorlhiac, Gabriella
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/07/2007, Internacional, p. A15

País realiza hoje votação parlamentar, em meio à disputa entre secularistas e o governo islâmico moderado

As eleições de hoje na Turquia não elegerão apenas o novo Parlamento, mas, muito possivelmente, definirão o futuro da nação turca. Enfrentando uma crise política há meses, o país está dividido entre a elite secularista, que controla o Exército, e eleitores do partido islâmico moderado Justiça e Desenvolvimento (AKP), do governo.

Apesar de recentes pesquisas indicarem vitória do AKP - que obteria 40% dos votos, quase 20 pontos porcentuais na frente do secularista Partido Republicano do Povo (CHP) -, a maioria absoluta do partido no Parlamento vem sendo ameaçada pelo medo do fortalecimento do islamismo no país, o aumento de ataques do grupo separatista curdo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) dentro do território turco e o elevado nível de desemprego - cerca de 10%.

Temendo ter de formar uma coalizão, o que dificultaria a aprovação da agenda do governo, o primeiro-ministro Tayyip Erdogan afirmou na semana passada que renunciará se seu partido não conseguir mais da metade dos 550 assentos do Parlamento. No país, os partidos precisam obter mais do que 10% dos votos totais para serem eleitos.

Responsável por um crescimento econômico anual de 7%, o AKP enfrenta uma forte reação popular, que vê no fortalecimento do partido uma ameaça à tradição secularista do país. Em abril e maio, centenas de milhares de turcos saíram às ruas para protestar contra o AKP. Abdullah Gul, candidato governista para suceder Ahmed Necdet Sezer como presidente - cargo que é aprovado pelo Parlamento -, foi forçado desistir de sua candidatura após deputados da oposição bloquearem a votação. Em outubro, os turcos votarão num referendo para decidir se as eleições presidenciais passarão a ser pelo voto direto. Analistas, no entanto, não acreditam numa ameaça islâmica dentro da Turquia. ¿Islã e democracia são compatíveis. O problema hoje na Turquia é prioridade. Para os secularistas, não pode haver democracia com religião. Então, o secularismo se torna automaticamente a única prioridade¿, afirmou ao Estado, por telefone, o especialista em Europa do Grupo Euroasia, de Londres, o italiano Wolfango Piccoli.

Aproveitando-se da insatisfação dentro do país, o Exército tem explorado politicamente as recentes mortes de soldados turcos em ataques do PKK no sudoeste do país, área tradicionalmente curda. Os militares cobram uma atitude mais dura do governo, pressionando por uma incursão no Curdistão iraquiano, onde está a maior parte dos rebeldes curdos. ¿O problema é que o governo de Erdogan não tem política definida para os curdos no Iraque ou na Turquia, o que o deixa vulnerável¿, disse ao Estado, por telefone, o turco Ilter Turan, professor da Universidade de Istambul e presidente da Associação de Ciência Política Turca.

Com uma população de pelo menos de 30 milhões, os curdos estão espalhados pela Turquia, norte do Iraque, Síria e Irã. Só na Turquia, eles representam 20% da população de 73 milhões. Sem Estado próprio, os curdos e suas tradições foram duramente reprimidos pelos governos turcos. Liderados por Abdullah Ocalan, os curdos entraram em conflito aberto com tropas turcas entre 1984 e 1999, que resultou na morte de dezenas de milhares de pessoas. O governo da Turquia acusa os separatistas curdos de terem matado 30 mil turcos no conflito.

As negociações no início de 2000 para entrada da Turquia na União Européia, atualmente emperradas, também obrigaram o governo aprovar uma série de medidas pró-curdas. Até 2002, por exemplo, a língua curda era proibida. Hoje, já é permitido o ensino em escolas particulares para pessoas com mais de 18 anos. Casamentos mistos são cada vez mais comuns, e os curdos estão deixando o sudoeste do país, pobre e pouco desenvolvido, para viver em outras cidades.

¿Apesar dos avanços, há indícios recentes de que a situação não mudou completamente. Relatórios de ONGs apontam inúmeras violações¿, acusou Mustafa Gondugdu, da organização Projeto de Direitos Humanos Curdos, em Londres.

O especialista, que é curdo e cuja família deixou a Turquia nos anos 80, disse que as reformas foram apenas cosméticas. ¿Na semana passada, um tribunal permitiu uma investigação sobre o prefeito de Diyarbakir, Osman Baydemir, depois de ele autorizar o envio de convites escritos em curdo para um evento. A mídia ainda é pressionada a não cobrir matérias sobre a questão curda¿, contou Gondugdu.

Cansados de anos de confrontos e isolamento, candidatos curdos adotaram nessa eleição um discurso mais focado em mudanças políticas e não no separatismo. Desde os anos 90, quando os primeiros deputados curdos eleitos para o Parlamento foram expulsos por manifestar sua origem curda, a população não tinha um representante parlamentar.

Para burlar a barreira dos 10%, os candidatos de vários partidos decidiram concorrer como independentes. De acordo com pesquisas, eles devem conquistar cerca de 30 assentos no Parlamento, onde tentarão ampliar os direitos curdos. Para Gondugdu, ¿o argumento de que os curdos estão muito mais integrados hoje em dia é complexo e dá uma impressão falsa. Afinal, você precisa integrar-se para sobreviver¿.