Título: O difícil equilíbrio entre Islã e valores democráticos
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/07/2007, Internacional, p. A8

O Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), do primeiro-ministro Recep Tayyp Erdogan, venceu as eleições de ontem na Turquia. Foi um dia importante. Seus efeitos se espalharão além das fronteiras turcas. Esse grande país se situa na fronteira entre a Europa e a Ásia, fronteira quente, que corre entre Bulgária e Grécia de um lado, e Síria, Iraque e Irã do outro. A Turquia tem outras singularidades. País muçulmano, em 1923 ele se tornou uma república laica fundada por Kemal Ataturk (1881-1938). Desde então, ela permanece fiel a seu fundador, sob o olhar rude de um Exército guardião dos dois traços de Ataturk: um nacionalismo passional e o apego ferrenho à laicidade. Evidentemente, o furor islâmico que se projeta sobre o mundo desde o final do século passado não deixou indiferentes esses 70 milhões de muçulmanos. Mas, por enquanto, a Turquia segue um caminho original. Ela tem um primeiro-ministro islâmico e moderado, o que parece um pouco acrobático. Desde 2002, Erdogan segue esse caminho escarpado. Apesar de islâmico, ele mantém boas relações com os EUA. Além disso, tem se empenhado intensamente para fazer seu país entrar na União Européia. É também por isso, aliás, que sua vitória terá repercussões além do Bósforo e de Istambul. O caminho audacioso percorrido por Erdogan é compreendido pelo povo turco. Foi por isso que ele obteve novamente maioria na eleição parlamentar. Mas uma parte da população permanece desconfiada. Ela teme que Erdogan, muçulmano fiel, aumente sua dose de 'islamismo'. Os turcos mais avançados, ocidentalizados - os moradores das grandes cidades, os intelectuais, os ricos, os empresários -, são claramente laicos. Eles receiam. Notam que, apesar dos discursos sobre 'igualdade entre mulheres e homens', Erdogan não tem nada a favor das mulheres, inferiorizadas no trabalho e submetidas cruelmente a seus maridos. É por isso que, após esta vitória do AKP, o Exército não relaxará sua vigilância. Ele não brinca com a laicidade e jamais hesita em atacar. Desde 1923, o Exército já depôs quatro governos suspeitos de islamismo. A última vez foi em 1997, quando a vítima foi o primeiro-ministro islâmico Necmettin Erbakan. Recentemente, quando Erdogan quis nomear o chanceler Abdullah Gul (do AKP) para a presidência, o Exército impôs duramente seu veto. O motivo: Gul é um islâmico. Com a vitória de Erdogan, o vasto país muçulmano, encostado na Europa e na Ásia, parece ter escolhido a via moderna seguida desde 2002, essa síntese sutil entre o Islã e os valores das democracias ocidentais. Mas isso não elimina totalmente duas tentações que o obcecam desde 1923: de um lado, um islamismo frenético com a Sharia (lei islâmica), véu e pouquíssimos biquínis; de outro, a embriaguez nacionalista, autoritária e laica, da qual o Exército permanece imbuído há mais de oito décadas. Resta, portanto, saber se os muçulmanos moderados do AKP saberão afastar os múltiplos perigos que os espreitam: a agitação curda, a pressão dos 'loucos de Deus' e também as tentações bonapartistas que podem ganhar força no Exército caso Erdogan se deixe alijar pelos islâmicos puros e duros que nunca foram desarmados em seu próprio partido.

*Gilles Lapouge é correspondente em Paris