Título: Há muito mais 'desastres anunciados'
Autor: Rocha, Marco Antonio
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/07/2007, Economia, p. B2
Azar é azar, não há como evitar.
Desgraça aparece quando menos se espera.
Eis duas pérolas da sabedoria popular bastante difundidas. E, não há como negar, abrigam muita verdade.
Mas uma outra pode complementá-las:
Não dê sorte ao azar.
Se alguém resolve passear à noite, num lugar escuro e mal-afamado da cidade e é roubado e espancado, claro que pode chamar isso de azar, de desgraça, de fatalidade. Mas tem outro nome também: imprevidência - o cidadão deu sorte ao azar e aconteceu o que podia prever e evitar.
Mas aí apenas o próprio imprevidente é punido. Pela imprevidência da autoridade pública e dos governantes o País inteiro paga. Mais ainda quando acompanhada de inoperância, comodismo e poltronice. Uma propensão irresistível para dar sorte ao azar, agindo imprevidentemente - ressaltada no horror com o Airbus da TAM -, infecta, há muito, sucessivos governos e governantes deste país. No atual, ganhou alento. Tanto assim que outros 'desastres anunciados' estão a caminho. Um deles, o de novo apagão elétrico. Outro, o do INSS. Todavia a imprevidência tem história. Lembremos de saída a do enorme endividamento externo iniciado nos anos 70 e que há mais de 30 anos trava o crescimento do PIB de um país que antes era o que mais crescia no mundo.
Não esqueçamos a maior delas: a imprevidência com a educação e o ensino, que se pode considerar clássica, pois há mais de meio século o povo clama por correção e a imprensa aponta o 'azar' resultante, ou seja, as conseqüências sociais adversas da desatenção. Educação e ensino estão praticamente ao deus-dará no que dependam do poder público. Não é preciso pesquisa nenhuma para comprovar. Os leitores sabem. E as conseqüências estão aí também: vão desde a qualificação muito mais baixa, na média, dos trabalhadores brasileiros, em confronto com os das indústrias de países vizinhos, como os da Argentina (sem mencionar os dos países mais desenvolvidos), até a marginalização de crianças e jovens cooptados pelo crime. Tudo a despeito de reformas do ensino trombeteadas e prometidas por quase todos os governos federal, estaduais e municipais.
Deste tema, que vive ao abandono - junto com os monumentos das praças públicas das nossas grandes cidades -, podemos passar para o da saúde e saneamento, onde não há como nem por que ser condescendente. Pessoas mais velhas devem lembrar dos mata-mosquitos e dos fiscais da 'febre amarela', que duas ou três vezes por ano iam de casa em casa no combate a epidemias; dos sanatorinhos, que virtualmente eliminaram a tuberculose; dos leprosários, que também combateram eficazmente a hanseníase; e vêem hoje, com espanto, a permanente derrota do poder público para a dengue, para o mal de Chagas para a própria tuberculose que está voltando, ao que tudo indica, vitoriosa. Isso a despeito da proliferação de órgãos públicos criados para tratar de saúde e saneamento; das exigências legais aparentemente rigorosas sobre higiene e sanitarismo; de uma Vigilância Sanitária que inferniza a vida de farmácias, creches, asilos, laboratórios, escolas, restaurantes, botecos e clubes - tudo para, supostamente, proteger a saúde de uma população que, não obstante, lota prontos-socorros e hospitais, desatendida.
Outra obrigação dos governos, sobre cujas mazelas, descaso e atrasos as queixas do povo ecoam, há anos, pelo País, e as cobranças da imprensa são diárias, é a da prestação de Justiça. Existe alguém que nunca tenha ouvido falar da urgente e imperiosa necessidade de melhorar a Justiça, de torná-la mais rápida e acessível? Existe algum político que não tenha prometido isso em suas campanhas eleitorais? E quem de nós não sabe que o mau funcionamento da Justiça é algo que se agrava com a conseqüência de deteriorá-la ainda mais, a ponto de tornar o Brasil um país a ser evitado por pessoas e empresas sérias que procurem lugar confiável para viver e trabalhar, onde contratos sejam respeitados e onde meliantes, trajando Armani ou short e havaiana, vão igualmente para as cadeias e ali cumprem suas penas em ambiente rigoroso, disciplinado, porém digno, e não em covis de imundície, como bestas-feras? (Construídos por governantes que prometiam resolver o problema carcerário!)
Nem precisaremos falar dos serviços de Segurança Pública e policiais, cuja deterioração tem sido denunciada governo após governo e cujas reformas e melhorias são programadas e prometidas por todos os novos governantes e ministros de Estado - sem que nada aconteça!
O problema é a falta de dinheiro?
Não é. Nunca antes neste país - pode dizer o atual presidente - se arrecadou tanto. Como poderia ter dito, também, seu antecessor. Há anos a Receita Federal sobe mais do que a inflação. No quesito arrecadatório o governo brasileiro é campeão pan-americano e olímpico. Na semana passada, saiu o balanço do primeiro semestre deste ano: R$ 33,5 bilhões a mais do que no mesmo período do ano passado ou 10,02% de crescimento real. Não há negócio no mundo mais lucrativo do que a Receita Federal brasileira. Desde a inauguração do Plano Real, os aumentos da carga tributária e da dívida pública (uma e outra, receitas do governo) foram astronômicos. E o superávit fiscal é comemorado todos os meses.
Não, não é falta de dinheiro. Bilhões de reais são jogados fora em obras inúteis e gastos supérfluos, nas Gautamas dos amigos.
É falta de seriedade, de competência, de empenho e de compromisso com o público. O resultado é esse quadro geral de falência do Estado e dos serviços públicos, que todo brasileiro sente no seu dia-a-dia.
Congonhas sofreu, sim, um 'desastre anunciado'. Mas há sinais de que o do futuro do País também já esteja anunciado.
Há anos.
*Marco Antonio Rocha é jornalista. E-mail: marcoantonio.rocha@grupoestado.com.br