Título: Apagão do governo
Autor: Sardenberg, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/07/2007, Economia, p. B2

Vamos supor que não tivesse havido nenhuma tragédia e/ou que a causa dos dois acidentes tenha sido uma combinação de falhas humana e técnica. Isso eliminaria a crise do setor aéreo? Reduziria as responsabilidades do governo federal? A resposta é um duplo não. Por não ter entendido isso, o governo erra na avaliação da crise e na sua administração.

Os estrategistas do presidente Lula se concentraram em procurar culpados fora das áreas controladas pelo governo. Assim, se o problema não foi na pista nem no controle do tráfego, mas no avião e na pilotagem, tudo bem, toc, toc, toc na oposição e na mídia. E aí segue a interpretação oficial: não há grande crise, de modo que algumas reforminhas aqui e ali quebram o galho.

Um erro caro.

Os elementos que causam a crise aérea estavam aí antes dos acidentes e continuam no cenário. A primeira causa: a demanda por vôos tem crescido na base de 12% ao ano. O número de passageiros simplesmente dobra a cada seis anos. As companhias aéreas têm conseguido responder a essa demanda. Em parte, foram até responsáveis por ela com a introdução da política das tarifas baixas.

Mas a oferta de vôos depende também da infra-estrutura aeroportuária, de inteira responsabilidade do governo. E, enquanto a demanda aumentava, o governo federal reduzia os investimentos no setor. Quando investiu, não o fez nos setores mais críticos. Isso agravou uma situação que vinha de anos. Há quanto tempo não se faz uma obra importante no setor? Para ficar só em São Paulo: a terceira pista do Aeroporto de Guarulhos, prevista desde 1987, continua na gaveta; o trem ligando São Paulo a Cumbica, outro projeto antigo, está parado (o governo Serra prometeu retomá-lo e lançar a licitação ainda neste ano); o trem São Paulo-Campinas, que viabilizaria o Aeroporto de Viracopos, é só uma idéia.

Para complicar as coisas: a demanda por vôos tende a aumentar. Voam turistas e pessoas a trabalho. Turistas dependem de renda, crédito e passagens mais em conta. Tudo isso está acontecendo com o processo de estabilização da economia.

O crédito, em especial, tem expansão espetacular propiciada pelo fim da inflação e a conseqüente queda de juros. Basta dar uma olhada nas páginas deste jornal: você vai a Salvador, para passar cinco dias, por cinco prestações de R$ 152. Ou passa uma semana em Bariloche por nove de R$ 220, mais entrada de uns R$ 650.

Como os negócios também esquentam numa economia em crescimento, isso necessariamente gera mais viagens de trabalho. E tudo combinado gera mais transporte de carga, aí incluídas as encomendas menores, os malotes.

E, de novo, tudo isso esbarra na infra-estrutura aeroportuária. Assim como o governo federal, dono de todo o setor, não conseguiu acompanhar a demanda crescente nesses anos todos, também não tem projetos de peso nem dinheiro para fazer as grandes obras necessárias.

A falta de visão ficou evidente no lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cujo objetivo explícito é 'superar os gargalos da economia'. Ali estão previstos, deste ano até 2010, investimentos de R$ 3 bilhões em 20 aeroportos.

Mixaria. A única pessoa que considera 'robustos' esses investimentos é - adivinharam - o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O próprio ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, calcula que o setor precisaria de uns R$ 40 bilhões, no mesmo período. Só para reformas de peso e ampliações nos três principais aeroportos de São Paulo seriam necessários uns R$ 7 bilhões.

Por isso o ministro Bernardo tomou duas iniciativas recentemente: pediu ao BNDES um estudo sobre como destravar o setor e introduziu nos altos escalões federais a questão da privatização de aeroportos. É por bom senso e por necessidade: o governo não tem nem capacidade nem dinheiro para tocar os grandes projetos necessários; o setor privado tem, logo...

Qual a chance dessa idéia prosperar? (Este artigo foi escrito antes do discurso de sexta-feira do presidente Lula.)

As chances são remotas. Primeiro pelo precedente: o governo ainda não conseguiu nem fazer Parcerias Público-Privadas nem simples concessões de rodovias. Segundo, pela ideologia: privatizar é neoliberal, como se sabe. Na verdade, se saísse um programa de privatização de aeroportos, seria um milagre.

A esperança é que já ocorreram milagres no governo Lula. Ou não foi milagre, e dos grandes, a decisão de Lula de jogar no lixo todos os programas econômicos do PT e da esquerda, para manter a política construída na era FHC (superávits primários, metas de inflação, Banco Central autônomo e câmbio flutuante)?

Além disso, Lula disse, na semana passada, referindo-se a seu passado de oposicionista, pré-governo: 'A quantidade de coisas que eu falei e falava porque era moda falar, mas que não tinha substância para sustentar na hora em que você pega no concreto.'

Uma das coisas que ele falava era que a privatização destruía o Estado e que o setor público precisava controlar as chamadas áreas estratégicas de infra-estrutura. Isso era a moda da esquerda. O concreto de hoje: o controle do governo se revelou um desastre; o setor privatizado foi bem.

Até aqui o governo insiste nas reforminhas e nessa fantástica idéia do grande planejador público para resolver a crise, em vez de aumentar a oferta do sistema, reduzir a demanda, isto é, cancelar vôos e dispensar passageiros.

Concluindo: com a infra-estrutura precária, o sistema trabalha no limite do limite. Só aceita operações totalmente dentro dos padrões. Qualquer escapada é desastre na certa. Se a pista de Congonhas tivesse mais mil metros, o piloto teria chance maior. E por que aquele avião pousa naquele aeroporto em dia de chuva? Porque não tem outro.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.