Título: A autonomia das agências
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2007, Notas & Informações, p. A3

A catástrofe de Congonhas, ao escancarar as relações incestuosas entre a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e as companhias aéreas cuja atuação ela deveria fiscalizar, mudou os termos do debate sobre um projeto que, apesar de sua imensa importância para a economia e os interesses dos consumidores brasileiros, vinha andando a passo de tartaruga no Congresso até o desastre do Airbus da TAM, que pôs a Anac no pelourinho. Trata-se da proposta que o Planalto enviou ao Legislativo em 2004 - e que poderá ser votada em agosto na Câmara - para definir uma lei geral comum às nove agências reguladoras, criadas no País a partir de 1997. A iniciativa do presidente Lula, que nunca morreu de amores por esses órgãos e, quando pôde, aparelhou politicamente as suas diretorias, visa a dar aos Ministérios a que as agências estão vinculadas mais controle sobre elas, que assim perderiam o poder de criar concessões.

Ao investir contra a sua autonomia, o projeto atenta contra o seu duplo papel institucional. Um, o de dar aos potenciais investidores nos serviços de infra-estrutura as garantias necessárias de que o cumprimento, pelo Estado, dos contratos de concessão ficará a salvo dos humores dos governos de turno. Outro, o de assegurar que as empresas concessionárias não atropelarão os direitos, estabelecidos nos respectivos contratos, dos usuários dos serviços. Ora, as atribuições de regular e fiscalizar a sua prestação pressupõem, no mais alto grau concebível, autonomia e independência, para evitar a captura das agências por apetites políticos ou empresariais. Eis por que os indicados pelo Executivo para a diretoria das agências dependem da aprovação do Senado, por que os mandatos dos diretores não coincidem com o do presidente da República e por que eles são estáveis.

Com a Anac no banco dos réus, esse último requisito passou a dominar as atenções. A equação consiste em assegurar a estabilidade dos diretores, pedra de toque da autonomia das agências, sem dar margem a que ela se torne sinônimo de impunidade, por desídia, incompetência ou corrupção. Em tese, o presidente da República pode determinar a abertura de um processo administrativo disciplinar contra o titular de uma agência - como houve quem sugerisse em relação ao presidente da Anac, o operador de turismo Milton Zuanazzi, que chegou lá em 2006, quando o órgão foi criado, pelas mãos do então ministro da área, Walfrido dos Mares Guia, e da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. (A estabilidade também pode ser quebrada em casos de condenação judicial definitiva.)

À parte o fato de se saber que no Brasil o substantivo processo sempre vem acompanhado do adjetivo interminável - provocando, nessas situações, um vácuo institucional que seria o pior dos mundos para uma agência reguladora -, o mais indicado é retirar essa faculdade do Executivo. Em nome da razão de ser desses organismos, já basta que o presidente escolha os nomes que deverão conduzi-los - os quais, mesmo quando é escandalosamente notória a influência do apadrinhamento político, passam sem susto pelas sabatinas de um Senado complacente e tão ou mais desinformado das questões do setor do que os afilhados incumbidos de seu controle e fiscalização. Foi assim que se constituiu a diretoria da Anac, cuja recusa a se demitir depois da tragédia do Airbus da TAM é um escárnio ao País do apagão aéreo.

Por isso, são boas as notícias de que a Câmara tende a aprovar uma emenda ao projeto do governo dando ao Senado, pelo voto de 2/3 dos seus membros, o poder de remover dos seus cargos, em circunstâncias excepcionais cuidadosamente caracterizadas, os diretores das agências cuja indicação a Casa havia avalizado. 'Não pode haver demissões políticas, sob comoção', ressalva o relator da proposta, Leonardo Picciani, do PMDB fluminense. Mas o essencial, como ele próprio reconhece, é que 'se necessita encontrar uma forma de preservar a autonomia (das reguladoras) sem que isso sirva de guarda-chuva para a incompetência'.

Outra alternativa seria instituir o recall dos diretores. Na metade dos seus mandatos, que variam de 3 a 5 anos, eles seriam novamente sabatinados para serem reconfirmados - ou não. 'A estabilidade', resume o diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Haroldo Lima, 'não deve ser absoluta.'