Título: Doha e os dilemas do Brasil
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/07/2007, Notas & Informações, p. A3

Num esforço quase desesperado para salvar a Rodada Doha, mediadores da OMC apresentaram um novo esboço de acordo, com maiores concessões para todas as partes. O chanceler Celso Amorim rejeitou a proposta, ontem, porque o Brasil, segundo ele, teria de conceder muito mais do que receberia. Mas declarou-se disposto a continuar negociando. Pelo esquema dos mediadores, americanos e europeus teriam de oferecer condições de comércio agrícola bem mais próximas daquelas cobradas pelo Brasil e por outros emergentes. Em troca, estes deveriam cortar suas tarifas industriais bem mais do que pretendiam. Qualquer nova discussão dificilmente partirá de um esquema muito diferente. Se houver uma nova proposta e o governo brasileiro a considerar palatável, terá de enfrentar três tarefas: 1) convencer os setores industriais ainda resistentes a uma abertura maior da economia; 2) persuadir os demais emergentes, incluídos Argentina, Índia, África do Sul, Egito e Venezuela, a entrar no jogo; e 3) negociar os detalhes para tornar o menos traumático possível o ajuste da indústria nacional.

Não se trata apenas de resolver se vale a pena cortar até 55% ou 60% das tarifas industriais consolidadas, para obter, no comércio agrícola, uma redução mais expressiva dos subsídios americanos e das barreiras européias. O corte máximo admitido pelos negociadores brasileiros, até há poucos dias, era de 50%. Segundo o esquema esboçado pela OMC, as subvenções pagas pelos EUA poderiam ter como teto algum valor na faixa de US$ 13 bilhões a US$ 16,4 bilhões. Os americanos haviam admitido chegar até US$ 17 bilhões. Quanto aos europeus, teriam de podar entre 66% e 73% de suas tarifas agrícolas. Vinham propondo uma redução de 60%, mas já acenavam com a possibilidade de chegar até 70%.

Para o governo brasileiro, o problema efetivo é mais complicado que uma decisão baseada em números parecidos com esses. Se falhar o esforço de conciliação, o jogo não será simplesmente suspenso. A situação seria muito mais confortável, se todos voltassem para casa e o mundo continuasse como no início da Rodada Doha, há quase seis anos. Mas o mundo mudou e continua mudando. Muitos acordos bilaterais e regionais foram celebrados nesse período - e outros estão em negociação ou em pauta.

A Coréia do Sul acaba de concluir um acordo de livre-comércio com os EUA e iniciou negociações com a União Européia. A região da Ásia-Pacífico está cada vez mais integrada. Essa integração é, em parte, baseada em políticas de complementaridade industrial, com importantes ganhos de produtividade e competitividade (padrão muito diferente daquele exibido pelo Mercosul). Tanto EUA quanto União Européia têm mostrado interesse em fortalecer os vínculos com essas economias, por meio de novos entendimentos.

Esse jogo vai continuar, com ou sem acordo na Rodada Doha, e provavelmente com maior intensidade no caso de um fracasso das negociações globais. As alternativas até agora exploradas pelo Brasil são muito mais pobres. Uma delas, a busca de um grande acordo entre economias emergentes e em desenvolvimento, nem de longe poderá compensar a perda de um acordo global. Além disso, as possibilidades de êxito de um empreendimento desse tipo são pequenas. A maior parte dos emergentes vem mostrando pouca disposição de oferecer concessões significativas. Num jogo desse tipo, o Brasil acabaria, quase certamente, oferecendo os maiores benefícios. Acordos limitados - entre Brasil, África do Sul e Índia, por exemplo - poderão ser mais produtivos, mas proporcionarão ganhos bem menores que os tratados com as economias avançadas.

Em qualquer caso, o governo brasileiro deverá fazer um esforço para reativar as conversações do Mercosul com a União Européia, especialmente diante do empenho dos europeus em buscar acordos com os parceiros da Ásia. Mas a União Européia não deixará de cobrar do Mercosul benefícios importantes nas áreas industrial e de serviços. Valerá a pena recusar essas concessões na Rodada Doha, para aceitar, diante dos europeus, condições provavelmente semelhantes? A isso será preciso acrescentar as dificuldades de uma negociação em bloco, especialmente se a Venezuela do presidente Hugo Chávez for incluída no Mercosul.