Título: Pantanal brasiliense
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2007, Notas & Informações, p. A3

Por renúncia ou cassação, a saída do tetragovernador do Distrito Federal (DF), Joaquim Roriz, do Senado da República é apenas uma questão de tempo - em Brasília não há viva alma que aposte na salvação do seu mandato. Nem por isso se torna supérfluo conhecer as minúcias do escândalo que lhe será fatal. Se não para completar o retrato de um exemplar da mais perfeita encarnação do coronelismo político brasileiro, que converteu o território que sedia a capital da República e o seu inchado entorno em feudo pessoal, ao menos para agregar ainda outra modalidade de malfeitorias à vasta coleção do gênero, da lavra dos corsários impropriamente chamados homens públicos deste saqueado País.

A primeira ponta visível do caso foram gravações policiais de recentes conversas telefônicas entre Roriz e o ex-presidente do Banco Regional de Brasília (BRB) Tarcísio Franklin de Moura, um dos 19 presos da Operação Aquarela por suspeita de desvio de R$ 50 milhões do banco. Nos trechos divulgados, ambos acertam a divisão de R$ 2,23 milhões em dinheiro, no escritório do dono da empresa aérea Gol, Constantino (Nenê) de Oliveira. A bolada correspondia ao valor de um cheque repassado por Nenê a Roriz. Na fantasiosa versão do senador de Brasília, ele ficou com R$ 300 mil, emprestados para que pudesse comprar uma bezerra, e devolveu ao bom ¿amigo íntimo¿ a vultosa diferença.

A explicação foi quase tão vexatória como o deplorável espetáculo proporcionado pelo senador ao subir à tribuna semana passada para tentar ¿provar¿ sua inocência, recorrendo a lágrimas, manifestações de compaixão pelos pobres e a ostentação de uma carolice que faria corar o proverbial frade de pedra. Não conseguiu angariar um único óbolo de solidariedade de seus correligionários do PMDB - muitos deles oportunamente ausentes do plenário. Num eufemismo antológico, o presidente da sigla, deputado Michel Temer, comentou piedosamente que faltou a Roriz ¿técnica discursiva para se defender¿. Outras ¿técnicas¿, no entanto, ele tem de sobra, como o noticiário do sábado deixaria claro.

A revista Veja, citando uma fonte próxima ao senador, revelou que ele não devolveu ao Nenê o ¿excedente¿ da ordem de R$ 1,9 milhão do cheque para pagar o empréstimo, mas usou esse ¿excedente¿ (ou teria sido o total do valor do cheque?) para subornar dois juízes do Tribunal Regional Eleitoral do DF. Acusado de crime eleitoral na campanha para o Senado, o processo ia mal para o seu lado. Três dos seis juízes já haviam votado contra ele, e dois a favor. Eis que o placar virou - um juiz mudou o voto e o colega que faltava também lhe deu ganho de causa. Roriz teria confessado o suborno ao seu primeiro suplente, Gim Argelo. Este, ao saber da reportagem, teve um piripaque, foi internado com suspeita de infarto, mas teve alta no dia seguinte.

Também no sábado, começou a ficar mais claro o papel do Nenê nesse escândalo. E esse papel é o que permite vislumbrar a enormidade do pantanal brasiliense por onde se movia, desenvolto, o todo-poderoso Roriz. Em março do ano passado, o deputado distrital Wigberto Tartuce, da patota do governador, comprou de estatais do Distrito Federal - entre elas o BRB - um terreno de 80 mil m². Pagou, no papel, R$ 15,2 milhões. Em dezembro, um projeto do governo, aprovado em um mês, aumentou de 56 mil m² para 128 mil m² a área de edificação na propriedade, valorizando-a, de uma penada, em R$ 72 milhões, ou 129%.

Em maio último, Tartuce vendeu o terreno, oficialmente por R$ 45,9 milhões, à empresa Aldebaram Investimentos Imobiliários, que faz parte do grupo Antares Engenharia. Nenê Constantino, da Gol, figura como investidor em vários empreendimentos do grupo. No mercado imobiliário local, o imóvel é avaliado em R$ 128 milhões, devido à formidável elevação da área que nele pode ser construída. Numa gravação da Operação Aquarela, um funcionário da Antares, Deodemiro Alves da Silva, diz ao interlocutor que ¿se a Polícia Federal baixar aqui agora, leva todo mundo. Tô eu, o Gim Argelo e o Nenê Constantino¿. Ele devia saber o que dizia.

O cheque de R$ 2,23 milhões que hoje faz o infortúnio de Roriz foi originalmente emitido em favor de Nenê por uma certa Agrícola Xingu. A empresa também faria parte do grupo Antares. Assim se fecha círculo vicioso da promiscuidade.