Título: Velhos bordões no congresso da UNE
Autor: Marchi, Carlos
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/07/2007, Vida &, p. A26

Entidade completa 70 anos com menos pluralidade ideológica.

Setenta anos depois, a União Nacional dos Estudantes (UNE), fundada em 1937, ainda batalha pelas mesmas bandeiras e usa os mesmos bordões, mas já não tem a pluralidade ideológica dos seus melhores momentos, quando estudantes de esquerda e direita disputavam sua direção. A direita quase sumiu; restou na UNE uma guerra santa protagonizada por uma miríade de tendências de esquerda que desde o começo já sabe quem vai ganhar. A feroz disputa verbal das assembléias vale muito pouco; no fim, as tendências dominantes se acertam e dividem nacos da direção.

No 50º Congresso da UNE, transcorrido ao longo da semana, na Universidade de Brasília (UnB), o velho protocolo se repetiu. Os dirigentes da entidade dizem que ela tem saudável pluralidade ideológica, mas, fora do espectro da esquerda, apenas uns poucos militantes do Democratas se aventuram por lá, sempre olhados com preconceito e alvejados por ironias; nas plenárias, recebem tomatadas, ovadas e até pedradas.

A esquerda se fustiga: o PSOL lançou o bordão 'Fora Renan e Roriz', enquanto o MR-8, acobertado sob a sigla do PMDB, bradava que o PT não podia cair no complô armado 'pela mídia burguesa' contra Renan e Roriz.

DE MENSALÃO A RORIZ

Sob o cenário maniqueísta que a esquerda sempre constrói, a 'mídia burguesa', eleita inimigo nº 1, surge como a explicação mágica e conveniente para justificar variados desconfortos. No congresso, se disse a torto e a direito que ela, a 'mídia burguesa', vive a inventar falsos escândalos para corroer o governo Lula e combater o avanço do socialismo - invenções que vão do mensalão aos sanguessugas, de Renan a Roriz.

Quando as conspirações da 'mídia burguesa' não explicam tudo, entra em cena o inimigo nº 2, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Ele é apontado como o lobo mau que os banqueiros internacionais impuseram ao País e que perverte o ingênuo Lula ao mau caminho; por isso, é urgentemente preciso cortar-lhe a cabeça, como bradava na sexta-feira na passeata contra o Banco Central, o presidente que deixa a UNE, Gustavo Petta.

'Lula neutralizou os movimentos sociais, é um símbolo extremamente forte e isso embota as críticas', diagnostica Jean Marc van der Weid, presidente da UNE no biênio 1969/71, e que teve sua reparação aprovada na sexta-feira pela Comissão de Anistia do governo, em pleno congresso. Outro ex-presidente reparado na mesma sessão, Aldo Arantes (1961/62), concorda com o senso geral: o movimento estudantil tem de criticar a política econômica 'que é contraditória com os objetivos do desenvolvimento'. 'Esse modelo não é o nosso', completa Petta. Aí, Meirelles volta à berlinda para explicar o resto.

JOGO DE EUFEMISMOS

As muitas explicações demandam um tortuoso jogo de eufemismos. A política econômica do governo FHC é, sem meias palavras, 'neoliberal', dizem eles; mas a política econômica do governo Lula merece outro rótulo, mais suavizado: 'derivou da política do governo anterior'.

Mas - atenção - é preciso saber distinguir o governo Lula do 'governo anterior': Lula, alegam, melhorou o diálogo com os movimentos sociais e tem as políticas compensatórias, que até aqui, segundo eles, fizeram a diferença, embora ainda estejam sob algum crivo.

Nas entrelinhas, deixam transparecer uma certa decepção com Lula, em quem gostariam de enxergar a audácia do herói nº 1, o coronel Hugo Chávez, presidente da Venezuela - hoje mais idolatrado do que Fidel Castro, de Cuba, que amarga galopante esquecimento.

Se o modelo de Lula fosse o de Chávez, afirmam, o Brasil já teria reestatizado as estatais privatizadas, Vale do Rio Doce à frente. Como não é, carece criticar o governo para ajudar Lula a chegar lá. O bordão 'Fora FMI', sucesso absoluto do passado recente, caiu em desuso porque leva a extrema-esquerda a lembrar que Lula pagou em dinheiro a dívida brasileira, em lugar de repetir a fórmula heróica do presidente da Argentina, Nestor Kirchner.

VELHOS BORDÕES

Nos embates verbais, os bordões reforçam as retóricas sempre empolgadas; quando é preciso invocar emoções, as opções são desenterrar o velho refrão - 'A UNE somos nós, nossa força e nossa voz' - ou repetir à exaustão Coração de Estudante (Milton Nascimento e Wagner Tiso) ou O Bêbado e a Equilibrista (de João Bosco e Aldir Blanc).

Entre si, as tendências de esquerda não se vaiam: no máximo, cada grupo aplaude freneticamente as intervenções de seus parceiros, muitas vezes completadas com o embalo dos refrões de rima pobre, enquanto o resto da platéia mantém intrigante silêncio.

Mas nem tudo é vermelho. A juventude dos Democratas ganhou as indicações de delegados da Fundação Universitária Regional de Blumenau (FURB) e tingia de azul o mar vermelho da UnB, ostentando camisetas com o nome destacado do partido. Evandro Stein, Maicon Soares e Diogo Santos contaram que são olhados com ironias, ouvem piadinhas. Mas atestam com surpreendente descortino: 'Somos de direita.'

A baiana Juci Santana, filiada ao PT (em trânsito para o PC do B), da organização do congresso, acabou aceitando posar ao lado deles a pedido do fotógrafo, depois de relutar um pouco. 'Meu pai do céu, o que vão pensar de mim?' Em nome da paz e da pluralidade que ela mesma diz garantir e que os dirigentes repetem a toda hora, ela ficou entre os três, mas, antes, virou a credencial de organizadora do congresso do lado contrário.