Título: Um círculo de pobreza a ser vencido
Autor: Constantino, Luciana e Iwasso, Simone
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/08/2007, Vida&, p. A24

Iniciativas conjuntas e melhores condições para os pais podem romper a rotina que envolve crianças excluídas

Enxergar as crianças que crescem sozinhas e, por meio de políticas conjuntas, incentivar a convivência familiar e dar condições socioeconômicas aos pais para que consigam cuidar de seus filhos. Esses são ingredientes apontados por especialistas para ajudar a romper o círculo da pobreza que envolve crianças excluídas.

¿Falta uma boa estratégia de capacitação e de comunicação que ajude a mudar o imaginário das pessoas e trate a convivência familiar como um direito¿, diz Mário Volpi, oficial de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Ele lembra que esse direito está assegurado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação que completou recentemente 17 anos.

Para Volpi, no caso das crianças que vivem em abrigo - local para onde boa parte das crianças e adolescentes abandonados acaba convergindo - é preciso incentivar programas que invistam em formação de famílias abrigadoras. Essas, por sua vez, devem oferecer - além de educação, alimento e saúde - carinho. ¿Há um mito de que criança adotada sempre dá problema de comportamento. Porém, há estudos que mostram o contrário.¿

Gabriela Schreiner, diretora-executiva do Cecif, organização não-governamental que trabalha na formação de funcionários de abrigos, diz que a mudança de mentalidade é o principal caminho para conseguir inserir essas crianças e ajudar a garantir que elas possam, quando adultas, trilhar um caminho diferente do de seus pais. ¿A gente não deveria ter um número tão grande de crianças fora de suas famílias. Esse é o principal ponto. E também não podemos ter o abrigo como um local permanente, aonde teoricamente elas acabam indo por um período temporário, mas na prática ficam até completar 18 anos.¿

O juiz Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, secretário da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional em São Paulo, diz que grande parte das crianças que estão em abrigo tem família e acaba indo para lá por falta de condição econômica para permanecer ao lado dos pais. ¿Muitas crianças estão em abrigo por descuido do Estado com a família¿, diz o juiz. Carvalho também defende políticas públicas voltadas para a família com um todo.

DIREITOS

A insistência no convívio familiar, no entanto, ainda engatinha em muitas esferas. ¿Estamos estudando entrar com uma ação conjunta porque muitas mães presas acabam tendo de entregar seus filhos para abrigos, porque não têm parentes para cuidar deles, não sabem onde eles estão. Alguns juízes não estão informando para onde estão encaminhando esses bebês¿, afirma Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Mulher Encarcerada, da Pastoral Carcerária. Pela lei, uma mãe presa pode amamentar a criança na prisão nos quatro primeiros meses. Depois, ou um parente assume os cuidados ou ela irá para um abrigo.

Há ainda outro problema. Quando a mãe e o pai estão presos, a criança acaba registrada apenas com o nome materno. Caso fique com parentes paternos, terá dificuldades para comprovar o parentesco. ¿Há muitas avós paternas que assumem os netos, mas não conseguem comprovar que são avós mesmo. Enfrentam dificuldades até para entrar na penitenciária¿, conta Heidi.

¿Quando um pai ou mãe é preso, uma criança acaba encarcerada junto, porque ela perde todo seu referencial de repente, e fica sozinha. Só que ela ainda tem toda uma vida pela frente e, na maioria das vezes, nunca vai saber como é ter família, irmãos, mãe, pai¿, afirma Denise Bressianini Gonçalvez, coordenadora do Movimento de Assistência aos Encarcerados de São Paulo (Maesp).

¿Sei que tenho três irmãos, que moram cada um num lugar, pelo que me disseram. Um dia, uma tia minha trouxe eles aqui. A gente viu televisão, comeu bolacha e depois eles foram embora¿, conta Ricardo (nome fictício), de 13 anos. Ele não se lembra de ter morado com a família - está no abrigo desde os 10 meses. Na época, o irmão mais velho, que tinha 9 anos, saiu pedindo ajuda para denunciar os maus-tratos que sofriam em casa do padrasto, atualmente na prisão no interior do Estado.

O local abriga, entre outros, crianças cujos pais estão na prisão. ¿Atualmente, das 17 crianças que tenho, cujo pai ou mãe estão presos, apenas duas mantêm contato¿, conta. São os próprios funcionários que levam as crianças nos dias de visita. ¿Hoje, ninguém presta atenção nelas. Elas saem daqui e acabam repetindo a história de seus pais¿, fala Denise.

Ela cita casos, que acompanha de perto. Janaina (nome fictício) cresceu em um abrigo, após os pais perderem a guarda dos seis filhos por maus-tratos. Fugiu, morou na rua, foi para uma favela. Hoje, aos 17 anos, ela é mãe de uma menina de um ano e meio - que já está no abrigo. Janaina foi presa no início do ano participando de um roubo e atualmente está na Fundação Casa, novo nome da Febem.

PESQUISA

Com relação às crianças soropositivas, a falta de atenção parte também da própria indústria farmacêutica, que desenvolve poucos medicamentos anti-retrovirais pediátricos, afirma a infectologista Annette Sohn, da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos. ¿Anti-retrovirais não são desenvolvidos especificamente para crianças. Na prática, damos doses menores dos mesmos remédios para adultos. Mas alguns são muito difíceis de administrar, outros não levam em conta o estágio de desenvolvimento delas e as doses nem sempre são confiáveis.¿

Em documento recente que trata de crianças que vivem com aids e enviado ao governo brasileiro, o Unicef diz que ¿pouco se sabe sobre a situação das crianças e dos adolescentes infectados ou afetados pelo HIV-aids, e mais esforços são necessários nessa área para assegurar que seus direitos sejam observados¿.

¿Pouco se fala das crianças com a doença, que têm décadas de vida pela frente¿, afirma Américo Nunes Neto, do Fórum de DST/Aids de São Paulo. ¿As próprias casas de apoio, que as abrigam, estão começando agora a tentar um trabalho de inseri-las num contexto familiar. Casos de adoções, por exemplo, ainda são raríssimos.¿

Cristina (nome fictício) está com 7 anos e mora numa dessas casas de apoio, na Grande São Paulo. Tem uma irmã, um ano mais velha. As duas começaram a freqüentar a escola no ano passado. Falam pouco, gostam de jogos de quebra-cabeça e ainda não entendem por que precisam de tantos remédios.

¿A gente abriga, elas crescem aqui, mas sem ajuda, o que vemos é sair com 18 anos órfãs do abrigamento, que terão filhos que talvez voltarão¿, resume Maria Clélia Pereira, psicóloga responsável pelas unidades da Fundação Nossa Senhora Auxiliadora (Funsai).

FRASES

Reinaldo Carvalho Juiz que atua na área da infância e juventude

¿A experiência aponta que muitos casos de crianças em abrigos estão associados à falta de condições econômicas da mãe para cuidar delas¿

Mário Volpi Oficial de projetos do Unicef

¿Falta uma boa estratégia de capacitação e de comunicação que ajude a mudar o imaginário das pessoas e trate a convivência familiar como um direito¿

¿A falta de conhecimento de que a convivência familiar é um direito gera um pensamento de que, se a criança está em abrigo, está bem. Mas ela também precisa de carinho¿

Gabriela Schreiner Diretora de ONG

¿A gente não deveria ter um número tão grande de crianças fora de suas famílias. Esse é o principal ponto. E também não podemos ter o abrigo como um local permanente, aonde teoricamente elas acabam indo por um período temporário, mas na prática ficam até 18 anos¿

Heidi Ann Cerneka Coordenadora da Mulher Encarcerada, da Pastoral Carcerária

¿Muitas mães presas que acabam tendo de entregar seus filhos para abrigos, porque não têm parentes para cuidar deles, não sabem onde eles estão. Alguns juízes não estão informando aonde estão encaminhando esses bebês¿