Título: Os esqueletos do serviço público
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/08/2007, Notas & Informações, p. A3

Está certo o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, ao incluir na pauta de votações da Casa o Projeto de Emenda Constitucional nº 54, de 1999, concedendo estabilidade aos cerca de 60 mil funcionários da administração federal direta e indireta admitidos sem concurso público antes da Constituição de 1988 e ainda na ativa. O deputado diz ter a ¿exata dimensão¿ do conteúdo polêmico da proposta, pelos acréscimos que a ela se incorporaram. Ainda assim, sustenta ele - ou por isso mesmo, seria o caso de dizer -, é preciso dar uma resposta, ¿qualquer que seja¿, a um problema que se eterniza. Trata-se, aliás, de mais uma questão reveladora da coleção de esqueletos que parecem não desaparecer nunca dos armários do Estado nacional.

Ela também ajuda a entender a barafunda que é o setor público brasileiro, as decisões oportunistas que dela decorrem, em geral sob pressão dos lobbies da burocracia e da conveniência dos políticos, e ainda o abismo entre essa realidade anacrônica e qualquer coisa vagamente parecida com a necessária eficiência da máquina na gestão dos rotundos gastos com pessoal dos poderes estatais. A Emenda nº 54, de autoria do então deputado paulista Celso Giglio, visava a corrigir uma anomalia, mas, como sempre, acabou dando margem a outras. O caso se origina em mais um erro dos constituintes de 1988 que deram estabilidade aos sem-concurso que estavam há mais de cinco anos no cargo. Foram excluídos, portanto, os servidores contratados entre 1983 e 1988.

O justo, à época, quem sabe teria sido dar-lhes a oportunidade de demonstrar em concurso as suas aptidões para os cargos ocupados, com o afastamento dos que ficassem aquém do padrão. À falta disso, instituiu-se a situação típica de dois pesos e duas medidas que o projeto veio para sanar. De quebra, estendia a estabilidade aos empregados das estatais contratados até 1991, quando se firmou a exigência de concurso para admissão também nas empresas da área pública. Estava a proposta nesse pé quando, há dois meses, o deputado tucano Zenaldo Coutinho, do Pará, propôs ampliar a estabilidade aos contratados a título temporário não apenas pela União, mas também pelos Estados e municípios há pelo menos 10 anos (a contar da data da promulgação do projeto).

O Brasil dos servidores temporários no mínimo há um decênio é o mesmo do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras, cobrado desde janeiro de 1994 e rebatizado de Contribuição - sempre temporária - em novembro de 1996. As estimativas sobre o total de provisórios variam, mas há quem mencione 230 mil, dos quais algo como 120 mil só em São Paulo. Fazer o quê com eles? Se forem demitidos, argumenta Coutinho, não terão direito à indenização, embora recolham para a Previdência. E a sua estabilização, a se concretizar, será de fato o trem da alegria de que falam os jornais? Decerto a expressão se ajusta melhor à segunda proposta anexada à Emenda nº 54. De autoria do pernambucano Gonzaga Patriota, do PSB, foi apresentada em fevereiro de 2003.

Ela permite que todo funcionário concursado para um cargo seja efetivado em outro, que exerça há pelo menos três anos, em qualquer órgão municipal, estadual ou federal que o tenha requisitado. Calcula-se que somem 20 mil servidores ou mais. Assim, o servidor de uma prefeitura interiorana que foi parar no Congresso, por requisição de um parente deputado ou senador - e não são poucos os apadrinhados -, terá o direito de engrossar os quadros ativos e inativos do Legislativo federal, com a paga e as prebendas que lhe seriam inacessíveis no emprego original.

Em conversas privadas, o deputado Arlindo Chinaglia teria se oposto aos dois textos apensados ao projeto de 1999. Mas dificilmente os seus pares resistirão às pressões combinadas dos não concursados, temporários e requisitados.

A demanda destes últimos, os menos numerosos da trinca, é claramente indefensável. Configura um atalho para subir na vida funcional, vedado a legiões de outros funcionários. Como era de prever, a sua atuação nos bastidores deve ter pesado na decisão do colégio de líderes da Câmara, em abril de 2006, para que a Emenda nº 54 fosse incluída na agenda de votações.