Título: Campo urbanizado
Autor: Graziano, Xico
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

O ano de 2007 será um marco na História da humanidade. A população urbana, em todo o mundo, vai superar a rural. As cidades, definitivamente, venceram o campo. Na quantidade, é certo.

Os dados foram divulgados em relatório oficial da ONU. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNPFA), as tentativas de conter a migração rural-urbana falharam, comprovando o inevitável processo de urbanização. Em 1950, moravam na roça 71% da população mundial. Agora está meio a meio. Em 2030, estima a ONU, os rurícolas cairão para 40,1%. As cidades crescerão muito, supõem os estudiosos, principalmente na Ásia e na África, continentes onde a maioria da população, cerca de 60%, ainda reside no campo.

No Brasil, a inversão dos moradores, na corrida rumo à cidade, ocorreu há mais tempo. Os censos do IBGE mostram que, até 1960, predominava a população rural. Em 1970, porém, já se constatava o predomínio da população urbana, com 56% da nacional. Atualmente, 81% dos brasileiros residem nas cidades.

A supremacia da cidade sobre o campo suscita, ao menos, duas questões relevantes. A primeira toca no passado. Trata-se de avaliar o que aconteceu com a qualidade de vida nessa jornada da urbanização. Aglomerações urbanas e, mais ainda, metrópoles não necessariamente melhoram a condição humana.

A segunda questão aponta o futuro. O processo de urbanização se afigura como inexorável. Entretanto, forças novas se movem na sociedade mundial, especialmente aquelas relacionadas com a progressiva degradação dos recursos naturais do planeta. Dependendo das soluções que a civilização encontrar para enfrentar a crise ambiental, abre-se a hipótese de ocorrer uma reversão na dinâmica populacional.

Os demógrafos tradicionais não acreditam nessa possibilidade. Supõem que a atração das cidades manterá a migração rural-urbana. Uma das razões dessa crença, correta historicamente, diz respeito à maior pobreza existente nas áreas rurais. Realmente, durante a primeira grande onda de urbanização, verificada entre 1750 e 1950, na Europa e na América do Norte, a industrialização capitalista ofereceu oportunidades de emprego que foram fundamentais para livrar as massas camponesas de séculos de opressão feudal. Assim floresceu a urbe.

Mais tarde, políticas públicas eficazes sustentaram o bem-estar social. Surgia a classe média, destacada entre operários e patrões. Com as róseas condições do Welfare State, ninguém pensa em ficar no campo.

No caso brasileiro, mesmo com deficiente planejamento urbano, o êxodo rural chegou avassalador. Em face da miséria rural, dificilmente se comprova se foi a cidade que atraiu ou o campo que expulsou tanta gente. O fato é que, em pouco tempo, o País se urbanizou fortemente. Cada século na Europa valeu aqui uma década.

Nem a violência nascida no asfalto, tampouco o desemprego nas periferias foram capazes de estancar o processo de urbanização brasileiro. Contribuiu a elevada taxa de natalidade. As famílias eram useiras em ter cinco, oito ou mais filhos. Com a queda da mortalidade infantil, tornou-se impossível ocupar a prole na terra batida.

Fruto de fenômeno cultural, o campo restou esquecido. Pior, passou a ser tratado com preconceito. As luzes da cidade é que importavam para a sociedade e a política. Às condições objetivas se somou a ideologia. A roça acabou lugar de Jeca Tatu. Pobre ruralista.

Muito bem. Passou. Resta descobrir agora, após a virada do milênio, no que se embasa o processo de urbanização. No horizonte se vislumbram negras nuvens. Não se trata, apenas, de apontar o aumento da criminalidade urbana, atemorizando citadinos. Nem, ademais, de perceber a fragilidade do mercado de trabalho.

No grau de consumo estará a ruína da cidade. O aquecimento global, a supressão das florestas e a poluição da natureza inviabilizam alongar indefinidamente o padrão de vida baseado no elevado dispêndio, quase desperdício, de energia. Vem aí um xeque-mate na civilização perdulária. Será possível às famílias chinesas e indianas manterem dois carros e um aparelho de ar-condicionado cada?

Certamente, não. Modificações no padrão de consumo e no modo de produção serão exigidas para oferecer futuro sustentável à humanidade. A habitação será diferente, o transporte mudará, o cotidiano será distinto. Haverá nova consciência, coletiva, sobre a vivência humana e o usufruto possível da natureza.

Certas regiões da Europa não distinguem a zona rural da urbana. Melhorias públicas, infra-estrutura viária, comunicação, uma série de investimentos permitem afirmar que o campo foi urbanizado. Ora, para que morar no centro poluído, se no arrabalde se encontram as mesmas comodidades, com a vantagem da melhor qualidade de vida?

Valoriza-se boa parte do interior brasileiro graças à redução de sua distância, física, pela tecnologia de comunicação. Melhores estradas, ônibus na porta, emprego próximo. Na era pós-moderna, com a decisiva ajuda da tecnologia das comunicações, a cidade se aproxima do campo.

Elis Regina - quem não se lembra? - cantava: ¿Eu quero uma casa no campo...¿ Três décadas depois, famílias se mudam para o interior à procura do sossego perdido, do ar puro, da proximidade com a natureza. Mesmo continuando a trabalhar na metrópole, habitam o campo. Felizes.

Rompem-se as fronteiras da cidade. Na época medieval, forte muro as cercava. Hoje se espraia, rompendo suas divisas.