Título: Carisma e liderança - 2
Autor: Kujawski, Gilberto de Mello
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/08/2007, Espaço aberto, p. A2

O artigo anterior, publicado nesta página com o mesmo título, em 2/8, obteve grande repercussão. Por que voltar ao assunto? Porque existe uma campanha do governo contra a imprensa, caluniando todo opositor a Lula e ao PT como ¿golpista¿, antiprogressista e traidor do Brasil. Desde logo aviso aos navegantes que não sou golpista, não faço parte do grupo que grita ¿fora Lula¿ e sou frontalmente contra qualquer tentativa de impeachment de um presidente eleito e reeleito democraticamente, amado pela maioria da população e contra o qual não se apurou nenhum crime de lesa-pátria.

Lula tem de ser metabolizado democraticamente e desassimilado futuramente nas urnas, se for isso o que o povo quiser. Mas para que se efetive o processo metabólico é preciso que exista oposição. No Brasil de hoje, temos o crime organizado, a corrupção organizada, mas nos falta uma oposição organizada. A oposição em nosso país foi cooptada e desorganizada por Lula e pelo PT. E não encontrou em si mesma forças e brio suficiente para reagir e entrar novamente em forma. A única oposição formal ao governo que existe hoje no Brasil não está no Congresso nem nos partidos, está na imprensa livre.

Esta é uma verdade que tenho dito sempre e que não me cansarei de repetir.

Já escrevi que o eixo em torno do qual Lula montou sua personalidade pública é a noção de carisma. Poucas palavras foram tão degradadas pelo tempo como esta. Na origem, como se sabe, o termo grego kharisma era do domínio exclusivo da teologia, designando um ¿dom¿ proveniente da graça divina, que é livre e sopra onde quer. Poucos tinham carisma: o papa, os sacerdotes, os reis, o Dalai-Lama. A partir da era das revoluções, o político fortemente engajado na revolução também foi aureolado pelo ¿carisma¿. Este é um crédito que a população concede a certas personalidades de destaque que se sobressaiam, principalmente, graças ao poder de persuasão e ao talento artístico. No século 19, o século de Napoleão, de Beethoven, de Victor Hugo e dos grandes empresários, a palavra carisma estendeu-se à pessoa de comprovado e excepcional valor em qualquer setor. O carisma secularizou-se, até chegar ao atleta ou ao cantor das multidões. Muito pior foi o passo seguinte. Após secularizar-se, a palavra carisma banalizou-se miseravelmente: qualquer boboca ao qual a mídia concede 15 minutos de fama toma a pose arrogante do carisma, qualquer nulidade, qualquer Paulo Coelho, declarando, após a morte de Ingmar Bergman, que o cineasta sueco é ¿chatíssimo¿. Chatíssimo é o texto escrito por um cérebro de dois neurônios.

Eis aí em poucas linhas a trajetória da palavra carisma. Na origem era um dom de Deus, ao secularizar-se passou a ser uma dádiva da sociedade e hoje em dia é uma concessão perfeitamente arbitrária da mídia.

O carisma ostentado por Lula veio da sociedade, de parte da sociedade brasileira, posteriormente ampliado pelos meios de propaganda. É carisma autêntico, de raízes populares, o que é forçoso reconhecer. Isto posto, cabe a indagação: que tem a ver o carisma com a capacidade pessoal e, no caso do político, com os dons de clarividência, liderança e comando? Aos olhos ingênuos da população mais carente e aos olhos marotos dos intelectuais petistas, ¿carisma¿ e ¿liderança¿ são a mesma coisa. Quem tem carisma tem liderança e vice-versa. No artigo anterior citei vários exemplos contrariando esta opinião generalizada. A liderança depende única e exclusivamente da capacidade pessoal do líder, de suas virtudes morais e intelectuais. Já o carisma é um dom, uma dádiva vinda de fora (Deus, a sociedade, a mídia), acrescentada à pessoa de seu portador. O carisma compara-se a um crédito concedido a determinada pessoa. Em muitos casos, o crédito contempla a pessoa errada, inconfiável, sem dotes, sem virtudes, desastrada e incompetente.

O primeiro traço distintivo da liderança é a capacidade de previsão e organização, principalmente nas situações de emergência. Neste aspecto, o governo Lula é catastrófico. Eis aí o apagão aéreo, a impotência em rearticular a infra-estrutura de transportes, estradas, portos, a própria aviação, e o tratamento estatizante (na linha imposta por José Dirceu) reservado às agências reguladoras. O PAC só funcionaria quando e se as Parcerias Público-Privadas saíssem do papel. Mas, para os petistas, privatizar é ¿neoliberal¿ (Sardenberg). Falta pouco para fazerem como os nazistas, que discriminavam entre ciência ariana e ciência judaica. Apagão aéreo? Não, apagão nacional do governo mais inerte da História republicana. O que ainda funciona nesta administração (pela lei da inércia) é a política econômica herdada de FHC, que, no entanto, patina sem sair do mesmo lugar.

Quando o carisma não vem acompanhado pela liderança, seu portador recorre a vários estratagemas para encobrir suas deficiências. Lula apela para o histrionismo. Procura fazer-se de engraçado para ser perdoado por suas falhas como líder. Foi o que aconteceu na posse daquele novo ministro de ego inflado, Nelson Jobim. O presidente não percebeu que aqueles seus homens de confiança que antes riam para ele, agora, estão rindo dele.

O histrionismo de Lula ao falar em público significa acomodação. Ele está acomodado, muito confortavelmente, nas boas graças do carisma. Lula raciocina assim: se tenho carisma, não preciso me empenhar para as coisas darem certo, não sou obrigado a trabalhar com afinco, nem a estudar, nem a falar corretamente. Planejar o governo, prevenir o futuro, organizar-me para governar, para quê? Se tenho carisma, posso pensar, agir e falar de improviso e o sucesso cairá do céu. Tudo dará certo se tenho carisma. Como disse o Frei Betto, ¿Lula tem muita intuição¿.

Em outras palavras: confiado cegamente no seu carisma, não custa ao presidente Lula vender gato por lebre desde que ganhou a primeira eleição.

* Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia (E-mail: gmkuj@terra.com.br)