Título: Canteiro de obras (políticas)
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/08/2007, Notas & Informações, p. A3

A reportagem Em três pastas, o mapa dos cargos, da jornalista Vera Rosa, publicada ontem neste jornal, traça um retrato fiel da servidão imposta aos governantes, sem distinção, pela estrutura do Estado brasileiro, o sistema político e o uso que disso fazem as caciquias partidárias. As três coisas se combinam para degradar a esfera pública numa reserva de mercado a toda sorte de ambições - as quais só excepcionalmente coincidem com o interesse nacional e os anseios da sociedade. A reportagem, como o seu título adianta, descreve o que o organizado ministro de Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia, ex-professor de matemática, tem sobre a sua escrivaninha: agrupadas em tabelas com códigos de cores, dentro de invólucros plásticos transparentes, as indicações dos integrantes da coalizão lulista de 11 partidos para a fartura de cargos de que o Planalto dispõe para distribuir, como queira, na administração federal direta e indireta.

Das vagas mais cobiçadas, cerca de 200 já foram preenchidas. Caninos à mostra, a alcatéia das bancadas governistas, do PT ao PP, ronda as demais 300. O símbolo por excelência da primeira leva de presas abatidas é a presidência de Furnas, abocanhada pelo ex-prefeito peemedebista do Rio Luiz Paulo Conde. Ao seu nome, na cor amarela que significa tudo certo, o meticuloso Mares Guia acrescentou o o.k. sonhado por todos quantos não vêem a hora de servir ao País, apregoando competência, denodo e desprendimento - não raro, atributos antes fictícios do que reais. O caso de Furnas foi o mais ostensivo porque o correligionário de Conde, o também carioca Eduardo Cunha, relator dos projetos que prorrogam a CPMF e a Desvinculação das Receitas da União (DRU) na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, deixou claro que os seus pareceres só sairiam ao gosto do governo se saísse a nomeação exigida pela seção fluminense do partido.

Que remédio! Há duas semanas, um relutante Lula formalizou o convite a Conde, apesar das objeções da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e do titular interino de Minas e Energia, Nelson Hubner. À saída da audiência, o ex-prefeito alegou ter sido escolhido porque o presidente não desejaria um ¿eletricista¿ em Furnas, mas um administrador. Já o ministro Mares Guia prefere perguntar, retoricamente: ¿Então um homem que já foi prefeito do Rio não tem competência para ser presidente de Furnas?¿ Pode ter, ou não - mas a questão é outra. Trata-se, antes de mais nada, da primazia que o tortuoso, infindável processo de nomeações acaba tendo na agenda presidencial, em detrimento das exigências da governança propriamente dita. Lula prometeu que, ao retornar de sua última viagem, transformaria o País num ¿canteiro de obras¿. Mas, desde que chegou, o que o absorve é o canteiro de obras políticas destinadas a aplacar os apetites conflitantes dos aliados.

Assim não fosse, Lula não teria se apressado a chamar a palácio o ministro Mares Guia na segunda-feira, mal voltou da sua viagem à América Central. Pelo menos foi coerente: antes de partir, garantiu aos líderes dos partidos da coalizão que, tão logo regressasse, cuidaria de concluir a partilha do butim, repetindo - guardadas as especificidades de cada caso - o que fizeram todos os seus antecessores desde a redemocratização. Primeiro, porque são demasiados os cargos de confiança que servem de moeda de troca nos acertos do governo com os políticos (o que ajuda a explicar a persistência do excesso). Se é verdade, como diz o novo presidente do Ipea, Márcio Pochmann, que a parcela de servidores públicos na população assalariada brasileira é bem menor do que nos Estados Unidos e na Europa, a parcela de cargos de livre provimento no serviço público brasileiro é muitíssimo maior. A segunda causa do toma-lá, dá-cá reside no sistema político.

Este se chama presidencialismo de coalizão porque os presidentes são obrigados a formar alianças heterogêneas para ter os seus projetos aprovados, ou seja, para governar. As regras eleitorais produzem governantes cujos partidos, sempre menos votados do que eles, formam bancadas insuficientes para lhes dar a maioria que os pouparia de fatiar o poder. É onde entra o terceiro fator: o descaramento dos partidos aos quais pouco interessa a linha do governo, desde que pague bem.