Título: Motivos para briga
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/08/2007, Notas & Informações, p. A3
As disputas comerciais deverão multiplicar-se nos próximos anos, se fracassar a Rodada Doha, têm advertido especialistas em comércio internacional. Se isso ocorrer, a atividade principal da Organização Mundial do Comércio (OMC) poderá consistir na arbitragem de conflitos, pois a cooperação ficará na dependência de acordos bilaterais e regionais. Uma parte dessa previsão já está sendo concretizada, e a situação ficará mais quente, em poucos dias, com a adição de etanol às controvérsias. Enquanto se prolonga o impasse e não se vêem sinais de solução, alguns dos principais atores da rodada trocam a mesa de negociações pelo bate-boca jurídico diante dos juízes da OMC.
O Canadá iniciou recentemente uma ação contra os subsídios à agricultura pagos pelo Tesouro americano. O Brasil aderiu ao processo, como terceira parte interessada. A Índia tomou o mesmo caminho. O interesse brasileiro é uma ampla contestação das subvenções americanas à agricultura. O Brasil já havia ganho uma ação contra os subsídios ao algodão. Brasília acusa Washington de não haver cumprido as determinações da OMC.
No novo processo, o governo brasileiro pretende contestar também a ajuda fornecida aos produtores americanos de milho destinado à fabricação de etanol. O primeiro passo será uma reunião de consulta entre representantes do Brasil e dos Estados Unidos. Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e George Bush haviam anunciado, há alguns meses, um plano conjunto de promoção internacional do etanol como combustível não poluente. Essa cooperação deveria incluir auxílio técnico para a produção de álcool em outros países.
Mas a cooperação não incluiria a abertura do mercado americano ao produto brasileiro, muito mais barato que o álcool fabricado nos Estados Unidos. Além disso, não se falou, pelo menos publicamente, sobre a eliminação de subsídios.
Com a contestação do programa americano, a cooperação bilateral no campo do etanol perderá muito de sua dimensão retórica e sua dimensão ficará mais clara. Etanol é um assunto politicamente importante nos Estados Unidos e vem sendo explorado pelos pré-candidatos à eleição presidencial do próximo ano. É irrealista esperar, portanto, a contestação dos subsídios ou do protecionismo por qualquer dos pretendentes à Casa Branca.
Com a aproximação do ano eleitoral, o debate sobre a política agrícola americana, já muito complicado, fica ainda menos promissor para os interesses do Brasil e de outros exportadores de peso. Se aprovado o projeto da nova lei agrícola em tramitação no Congresso dos Estados Unidos, Washington poderá aumentar os subsídios aos produtores nos próximos quatro anos. Para os congressistas americanos, tudo se passa como se não fosse necessária nenhuma concessão em matéria de agricultura, nas negociações da Rodada Doha. Mais que isso, tudo se passa como se as mudanças combinadas na Rodada Uruguai, terminada em 1994, não tivessem a menor importância.
O fundamento alegado pelo governo brasileiro em seus processos contra a política agrícola americana tem sido o descumprimento, pelos Estados Unidos, de compromissos assumidos naquela rodada. O Tesouro dos Estados Unidos - esta é a acusação - tem violado, em várias ocasiões, os limites acordados na OMC. Trata-se, portanto, de fazer cumprir as normas em vigor, sem misturar esse tema com as negociações de novas normas para o agronegócio na Rodada Doha. A mesma alegação tem sido usada nas ações contra a política agrícola da União Européia.
Tanto pelo descumprimento das normas acordadas na rodada anterior quanto pelo projeto da nova lei agrícola, os políticos de Washington seguem na contramão dos objetivos definidos há quase seis anos no lançamento da Rodada Doha.
As novas disputas na OMC não são motivadas, no entanto, só pelos problemas do agronegócio. Há outros processos em curso e os Estados Unidos acabam de iniciar uma ação contra a China por causa da pirataria. Nesse processo, Brasília poderá atuar ao lado de Washington. Tudo isso envenena o ambiente num momento extremamente delicado das negociações comerciais. Num mundo politicamente razoável - aparentemente distante da realidade atual -, esses conflitos poderiam estimular a conclusão de um novo acordo.