Título: Uma noite de silêncio. E de vergonha
Autor: Freire, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

A História brasileira é repleta de grandes momentos de afirmação republicana, mas também se constitui numa vasta passarela por onde, em períodos mais longos ou mais curtos, costumam desfilar a podridão, o arrivismo, a irresponsabilidade, a falta de compromisso com o futuro, quase sempre tendo como pano de fundo o compadrio vergonhoso e deprimente entre Poderes constituídos, e muito em particular entre Executivo e Legislativo.

No governo Lula, o desfilar de homens de ¿triste figura¿ e de fatos funestos por esta passarela igualmente funesta tem sido uma prática constante e que atenta contra as instituições democráticas brasileiras. Em vez de uma pedagogia de boas práticas administrativa e política, infelizmente o legado de Lula para as novas gerações - as atuais e as que virão - é de uma ética deformada, cujo preço certamente continuaremos a pagar nas décadas vindouras.

O último dejeto expelido por um duto do governo e de sua base de sustentação no Congresso Nacional foi a aprovação pela Câmara dos Deputados da chamada lei da fidelidade partidária (Proposta de Lei Complementar 35/07), permitindo que parlamentares possam desligar-se de seus partidos no último mês que antecede o prazo de um ano das eleições, sem o risco de perda de mandato. É a infidelidade anunciada para um previamente determinado mês de setembro, em que tudo será permitido no troca-troca partidário, tempo da locupletação, da esbórnia, da imoralidade. A base de sustentação do governo, em sintonia com o Palácio do Planalto, ignorou todo o leque de propostas positivas debatidas amplamente há vários anos na Câmara e no Senado e lançou mão de uma saída desonesta, descarada e descolada de qualquer referência jurídica razoável, para atender a mensaleiros, sanguessugas, vendedores de mandato e toda sorte de mercenários que têm por hábito transformar o voto em moeda de um escuso mercado político.

Ao invés de combater a infidelidade partidária, o governo e sua base de sustentação a reforçaram, incentivaram e incitaram, dando-lhe um caráter ainda mais hipócrita. Se a proposta for transformada em lei, trânsfugas contumazes ficam livres para operar as negociatas com o Palácio do Planalto e, ao mesmo tempo, colocam uma faca no pescoço dos partidos políticos, que se verão à mercê de muita instabilidade no processo de formação de suas nominatas aos cargos majoritários e proporcionais. Em tese, um forte candidato, dentro de uma estratégia malévola, pode resolver trocar de legenda no último dia de setembro, ficando seu partido de origem sem nenhuma possibilidade de reação para enfrentar o quadro adverso que então estará colocado.

A decisão da maioria da Câmara confronta a ética, o bom senso, agride frontalmente a autonomia partidária e fere gravemente a democracia. Os representantes políticos na Casa, que deveriam olhar com mais atenção para os partidos, resolveram apunhalá-los. E os apunhalaram evidenciando uma nítida vassalagem ao governo federal.

É legítimo o governo contar no Parlamento com uma base de apoio político. É crime, é um atentado à democracia quando esta mesma base apenas chafurda na lama do Executivo. Conforme noticiou este jornal, o governo federal, em reunião do Conselho Político, trocou votos em favor da CPMF por apoio à proposta que desmoraliza o Poder Legislativo.

Toma-nos uma preocupação com o jogo que envolve Planalto e Congresso Nacional e que pode enterrar, de fato, uma instituição-pilar da democracia, que o atual governo e sua base aliada vêm tentando sepultar, pela tática de conspurcação quase diária, como quem aposta na evolução da doença que vai matar o paciente. No caso em questão, matar mais do que moralmente. Está evidente que é propósito do lulo-petismo perverter, ao limite, a atividade política. Assim, o Executivo é que passaria, a exemplo do que ocorre na Venezuela, a ¿dialogar¿ com a sociedade, promovendo excessiva concentração de poderes, cujo exemplo mais espúrio é a reeleição indefinida. É um modelo que vem fazendo escola em países neste nosso infeliz continente dos caudilhos. No Equador e na Bolívia já está sendo aplicado. Eu denomino esse processo de transição para a ditadura. Não devemos esquecer: esse fenômeno que estamos observando no século 21 teve similitudes no século 20, quando governos eleitos democraticamente, como os de Hitler e de Mussolini, transitaram para o totalitarismo nazi-fascista, de triste memória.

Legislativo para quê? Temo que essa seja a pergunta que, nos sonhos dos áulicos de plantão, venha a povoar a cabeça de todos os brasileiros, com uma resposta que eles tratam de tornar cada vez mais previsível. Com políticos emporcalhados por práticas que repugnam a cidadania, fica fácil para o presidente defender a Assembléia Constituinte exclusiva, aquela que ficaria bem longe da pocilga, formada por pessoas decentes, que tomariam conta do lugar no processo legiferante. Sem nenhuma vocação para lidar com a crítica, Lula prefere que o País prescinda do contraditório.

Mesmo consciente das reconhecidas dificuldades éticas e de ordem política vivenciadas no momento pelo Senado, o PPS espera e torce para que essa Casa revisora corrija o desatino cometido pela maioria governista na Câmara. O PPS, além de continuar lutando no Parlamento para que uma necessária e verdadeira reforma política triunfe, não abre mão de trabalhar pelos primados da autonomia partidária na Justiça. Assim como quer de volta os seus mandatos surrupiados pelo poder corruptor do governo (e já demandou por isso no STF), o partido está disposto a recorrer, quantas vezes for necessário, às esferas judiciárias. No caso de a mudança desventurosa da Câmara se tornar lei, com uma ação direta de inconstitucionalidade - para que a proposta aprovada pelos deputados não se consagre como uma escandalosa lei de infidelidade partidária.

* Presidente do PPS, foi deputado federal por Pernambuco durante 20 anos, cumpriu um mandato de senador e se candidatou a presidente da República em 1989 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB)