Título: O Planalto diante do Supremo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2007, Notas & Informações, p. A3

Ainda não é o julgamento do mensalão - e da ¿sofisticada organização criminosa¿ à qual o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, atribuiu a sua concepção e operação, para servir aos interesses do petismo no poder. Se o Supremo Tribunal Federal (STF) instaurar esta semana o processo pedido pelo procurador há 17 meses contra os 40 denunciados por até oito crimes, o veredicto final tardará anos; com toda a probabilidade, o titular do Planalto já não será Luiz Inácio Lula da Silva. Em agosto de 2005, depois de muita relutância, ele se dirigiu ao País para dizer que se sentia traído ¿por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento¿ - a compra sistemática de deputados para votar ao gosto do governo -, embora, por isso, fosse ele, presidente da República, o beneficiário último da ¿quadrilha¿ identificada pelo procurador-geral Antônio Fernando.

Mas, qualquer que seja a decisão imediata da Corte, o seu impacto político decerto ofuscará o escândalo do dia - ou melhor, dos últimos 80 dias - envolvendo um presidente do Senado, Renan Calheiros, réu em três processos abertos pelos seus pares por quebra de decoro parlamentar. Isso não se alterará pelo fato de que, a começar do relator da matéria, ministro Joaquim Barbosa, os 10 magistrados que a seu respeito também se pronunciarão venham esclarecendo que o debate previsto para terminar na sexta-feira será eminentemente técnico. Não apenas no sentido superficial de avaliar se os indícios coletados pelo procurador justificam a abertura da ação penal requerida, mas também sobre o modo de levá-la adiante, se for o caso. ¿Será uma grande discussão sobre direito penal¿, antecipou ao Valor a ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha. Faz todo o sentido.

Dadas as características das evidências levantadas, envolvendo numerosos crimes conexos, e o emaranhado de relações presumivelmente delituosas entre os acusados - parceiros, de resto, na política e no negócio -, o STF terá de julgar se processa todos eles ou, se processar uns e não outros, a ação contra os já então réus não ficará prejudicada. A polêmica emergiu pela primeira vez quando o ministro Barbosa defendeu o ponto de vista segundo o qual o Supremo deveria examinar apenas o que dissesse respeito àqueles dos 40 que gozam de foro privilegiado - por serem ministros ou parlamentares à época dos fatos -, remetendo-se à primeira instância o que houvesse em relação aos demais. Numa Corte dividida ao meio, prevaleceu afinal o entendimento de que, estando os primeiros imersos em quase todos os aspectos do escândalo, a separação seria contraproducente.

Evidentemente, para o governo, os políticos, a mídia e a opinião pública, a questão técnica de fundo - a gritante incompatibilidade entre a função essencial de um tribunal criado para dirimir seletos litígios de natureza constitucional e a obrigação de conduzir processos criminais contra réus mais iguais que os outros - empalidece perto da dúvida sobre o destino não de todos os 40 visados pelo procurador-geral, mas daquele que, no seu entender, seria o ¿chefe¿ da quadrilha, quando ministro da Casa Civil, e ¿capitão do time¿ do governo, como Lula o batizou - o deputado cassado José Dirceu. Ele insiste desde a primeira hora, implausivelmente, que não sabia do suborno de deputados, nem tampouco dos rolos financeiros do PT com o publicitário Marcos Valério, e que não há provas objetivas de sua participação na lambança.

Mas, se o STF vier a processá-lo - pouco importando no que der a ação -, ganhará outra envergadura, como uma sombra sobre o segundo mandato de Lula, uma frase que ele dizia e repetia: ¿Tudo o que faço é por ordem do presidente e nada faço sem informá-lo antecipadamente.¿ Eis por que a posição da Suprema Corte, diante do que, em direito, ainda é uma preliminar, tornará a aproximar o mensalão do gabinete mais distinguido do Palácio do Planalto - e dará ao seu ocupante a oportunidade de reiterar em alto e bom som a tese da traição (sem a identificação dos traidores) e do seu desconhecimento do mais disseminado esquema de corrupção em Brasília desde o collorato. Só para um dos protagonistas do espetáculo tanto faz o que o Supremo resolver: no PT, exceto o tesoureiro Delúbio, todos são inocentes.