Título: É melhor ter medo da crise
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2007, Notas & Informações, p. A3

Falando de Brasília para o mundo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva repetiu que o Brasil, armado com US$ 160 bilhões de reservas, não tem medo da crise financeira - ¿uma crise eminentemente americana¿. Ora, é exatamente por ser americana que a crise nos ameaça muito mais do que se fosse só nossa. Se os danos forem além do mercado financeiro e prejudicarem o crescimento mundial, o comércio será afetado e haverá prejuízos para os exportadores de produtos agrícolas, de minérios e de bens intermediários. Ontem, os mercados de produtos básicos foram mais uma vez afetados pela insegurança dos investidores. As cotações dos metais subiram em Londres, acompanhando a evolução das ações nos mercados da Ásia e da Europa, mas a maior parte dos produtos agrícolas desvalorizou-se em Chicago, centro mundial de formação de preços do agronegócio.

A maior parte do superávit comercial brasileiro provém da exportação de commodities agrícolas. Neste ano, até julho, o comércio do agronegócio gerou um superávit de US$ 27,4 bilhões, segundo balanço divulgado pelo Ministério da Agricultura. As cotações desses produtos subiram mais de 50% em dólares, a partir de 2003, segundo levantamento do Commodity Research Bureau. O movimento começou a inverter-se, nas últimas semanas, quando se agravou a crise iniciada no mercado americano de hipotecas imobiliárias e fundos liquidaram posições porque precisavam conseguir dinheiro, rapidamente, para cobrir perdas no setor financeiro. Com isso, ampliaram-se os temores de contágio da economia real, isto é, das atividades de produção, consumo e investimento produtivo.

Ainda não se pode saber se a redução de cotações indica uma inversão da tendência, disse a economista-chefe do Banco ABN Amro no Brasil, Zeina Latif. Se a mudança for confirmada, os mais prejudicados, segundo ela, serão os emergentes, que ¿vinham surfando na alta das cotações nos últimos anos¿. Outros especialistas já formulam previsões para este ano e para o próximo. Segundo Fábio Silveira, sócio da RC Consultores, os preços das commodities agrícolas devem voltar ao nível de 2004.

Naturalmente, qualquer projeção é arriscada, neste momento, mas nada é mais perigoso que imaginar o Brasil como ilha de prosperidade no meio de um mundo conturbado. Com US$ 160 bilhões de reservas, dívida externa manejável, muita gordura para queimar no balanço de pagamentos e inflação bem comportada, o País pode enfrentar sem grandes danos uma crise limitada. Mas não será invulnerável aos efeitos de uma grande redução do crescimento mundial.

O risco de uma alteração abrupta no cenário global parece limitado. A economia americana ainda exibe dinamismo, apesar da crise no setor imobiliário. Se as importações dos Estados Unidos encolherem ou passarem a crescer muito mais lentamente, o comércio exterior chinês será afetado. Mesmo assim, a economia da China dificilmente será freada de um dia para outro. Estão em curso grandes projetos de investimento e o consumo interno está em expansão. Outros países da Ásia continuam prósperos e as economias européias têm mostrado maior vigor do que nos últimos anos. É provável, portanto, uma acomodação mais ou menos suave da economia global. Mesmo sem a crise iniciada no mercado hipotecário, essa acomodação vinha sendo prevista.

Até no cenário mais otimista parece difícil descartar, em 2008 ou 2009, um período de arrumação nos mercados globais. Essa arrumação terá conseqüências tanto nos fluxos de financiamento e de investimento quanto na evolução do comércio. Em qualquer caso, as condições serão provavelmente menos favoráveis ao Brasil do que vinham sendo nos últimos anos.

Se essa hipótese se confirmar, o poder de competição dos produtores brasileiros será testado com maior severidade. Um governo prudente cuidaria, sem demora, de promover a adaptação da economia nacional a essas novas condições, tratando de reduzir sua voracidade fiscal, apressando a realização de investimentos em infra-estrutura e dando prioridade à redução dos custos suportados pelo sistema produtivo. Para isso devem servir os US$ 160 bilhões de reservas: para dar ao governo mais tempo para promover os ajustes necessários.