Título: O mais cruel dos meses?
Autor: Malan, Pedro S.
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

O atual ministro do Planejamento, como seus antecessores, certamente considera agosto ¿o mais cruel dos meses¿. E os agostos mais cruéis são os dos anos anteriores a eleições, inclusive municipais.

Até o final deste mês o governo está obrigado a encaminhar ao Congresso a sua proposta orçamentária para 2008. O processo de elaboração leva alguns meses, ao longo dos quais o Ministério do Planejamento tenta realizar uma tarefa quase impossível: compatibilizar os pleitos (sempre por maiores recursos) dos outros 35 ou 36 Ministérios, que, como sempre, no agregado, excedem de muito as melhores projeções de receita disponíveis - comprometendo o atingimento do resultado fiscal desejado.

Vale notar, de passagem, que o presidente Lula já havia indicado a direção do movimento ao declarar, em 16/5: ¿Posso afirmar que a irresponsabilidade fiscal não voltará, mas, ao mesmo tempo, eu tenho idéia de flexibilizar um pouco.¿ Como o fez ao anunciar, com antecedência, a meta de inflação para 2009, superior às expectativas então existentes, alegando que a cota de ¿sacrifícios¿ era excessiva.

O fato é que, apresentada a proposta orçamentária, devidamente ¿flexibilizada¿, conforme determinação presidencial, o processo segue seu curso normal: a Comissão do Orçamento do Congresso procurará argumentos para chegar à conclusão de que as projeções de receita do governo estão subestimadas, abrindo espaço para uma ¿flexibilização¿ adicional do gasto.

Ao final do processo legislativo, o Congresso aprovará um orçamento diferente do enviado pelo Executivo, não tanto na composição e estrutura do gasto segundo seus critérios de prioridades entre os vários programas dos vários Ministérios - o que é perfeitamente legítimo como função do Parlamento em qualquer democracia -, mas também com valores de receitas e gastos maiores, no agregado, do que os sugeridos pelo governo. Que será obrigado a contingenciar os gastos a partir do início do ano, à espera do real comportamento da receita. E la nave và...

Neste contexto, é uma lástima que as áreas sensatas deste governo não tenham conseguido, em fins de 2005, levar adiante sua proposta de contenção da excessiva taxa de expansão do gasto público corrente, numa perspectiva de médio prazo. Fazia o maior sentido a proposta de adoção, em lei, de uma política que limitasse este tipo gasto, no agregado, como proporção do PIB. Um porcentual que idealmente deveria ser declinante, ainda que na margem, mas por alguns anos à frente, digamos 0,1% ou mesmo 0,05% do PIB. E não um aumento expressivo, como vem ocorrendo há anos, exigindo carga tributária crescente - e comprimindo o investimento público ao porcentual hoje irrisório de cerca de 1% do PIB, com os efeitos conhecidos sobre a infra-estrutura do País.

A expansão continuada - implícita na derrota de Palocci/Bernardo em fins de 2005 e nas subseqüentes decisões de ¿flexibilização¿ -, ainda que pareça natural pela ¿economia¿ nos pagamentos do serviço da dívida pública devida à redução dos juros, significa uma implícita recusa a contemplar alterações na estrutura ou composição do gasto público corrente (e avançar em indispensáveis reformas, como a da Previdência), impedindo maior eficiência em termos de gestão de recursos públicos escassos e, principalmente, mais investimentos públicos em relação aos gastos de consumo do governo.

Disto, e de nossa capacidade de reduzir as barreiras (microeconômicas regulatórias, tributárias e institucionais) que hoje tolhem a expansão mais acelerada do investimento privado (escassos 17% do PIB), depende a sustentabilidade do crescimento econômico a taxas relativamente elevadas no longo prazo.

Mas há outras visões. Um eminente jurista paulistano (Fábio Konder Comparato) atribuiu os êxitos extraordinários do Japão no imediato pós-Guerra, da Coréia do Sul a partir dos anos 60 e da China nos últimos 20 e poucos anos à ação de seus respectivos órgãos estatais encarregados de planejamento, e conclui: ¿Um órgão análogo pode e deve ser constituído agora no Brasil, sem subordinação à Presidência da República e menos ainda ao Banco Central. Ele há de ser estruturado num contexto plenamente democrático, contando com a participação efetiva dos diversos grupos e setores que compõem a nossa sociedade. Competirá com exclusividade ao novo órgão estatal elaborar os planos de desenvolvimento e os orçamentos programa correspondentes, cujas diretrizes gerais podem ser submetidas à aprovação popular, antes da decisão final do Poder Legislativo¿ (FSP, outubro de 2006).

Acho que não foi exatamente isso que Japão, Coréia do Sul e China fizeram. E espero que não tenha sido com base nessa sugestão que o governo do presidente Lula tenha criado, com status de Ministério, a Secretaria Extraordinária de Assuntos de Longo Prazo. Assim como espero que não seja isso que o professor Mangabeira Unger tenha em mente ao estruturar o programa de trabalho de sua secretaria. Minha carreira profissional teve início, há mais de 40 anos, no antigo Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada (Epea), que, entre outras coisas, fazia, sim, trabalhos que envolviam pensar o Brasil numa perspectiva de longo prazo. O antigo Epea era parte do recém-criado Ministério do Planejamento, mas muitos de nós nos considerávamos servidores do Estado, e não do governo do dia, com total apoio do então ministro (Roberto Campos) e de nosso superior imediato (João Paulo dos Reis Velloso). O que importava era a qualidade dos trabalhos - vistos como bens públicos -, e não uma contribuição para objetivos políticos do governo do momento. A idéia de aparelhagem da máquina pública nos era estranha.

Éramos jovens, muito ingênuos talvez. Mas, mesmo depois de mais 40 agostos assediando nossos semblantes, muitos de nós continuamos achando, como Camões, que certas coisas na vida, ¿melhor merecê-las sem as ter que tê-las sem as merecer¿.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC E-mail: malan@estadao.com.br