Título: 'Deportação põe em xeque uma tradição brasileira'
Autor: Scarance, Guilherme e Manzano Filho, Gabriel
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/08/2007, Nacional, p. A14

Ao devolver dois cidadãos a um país que vai puni-los o Brasil violou uma antiga regra da diplomacia mundial, diz o estudioso

O governo brasileiro deu à questão dos dois boxeadores cubanos, do começo ao fim, um tratamento político, não humanitário. O ato totalitário daí resultante põe em xeque uma rica tradição da diplomacia brasileira de proteger pessoas e buscar saídas diplomáticas, mesmo nos mais difíceis contenciosos. Violou-se, no episódio, uma sólida regra do direito internacional, que é o princípio do ¿non-refoulement¿ - a norma que aconselha não repatriar pessoas que certamente sofrerão punições ao voltar ao seu país. ¿Houve motivação política, até onde pudemos ver, e o princípio de proteção internacional do indivíduo não foi considerado¿, adverte o cientista político Fúlvio Fonseca, especialista em problemas de refugiados que trabalha na área de Relações Internacionais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O fato de os boxeadores Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara terem informado que queriam retornar a Cuba ¿até torna a análise mais delicada¿, ressalta. ¿Pois até que ponto esse era de fato o desejo ou até que ponto foram pressionados a isso, não temos como saber.¿

Como o sr. viu o episódio do repatriamento dos dois cubanos?

Minha impressão é que o governo brasileiro não tratou essa questão do ponto de vista humanitário: o tratamento foi político. Em casos como esse, em que é preciso preocupar-se em primeiro lugar com a proteção da pessoa, as questões do ordem humanitária devem prevalecer, e isso não ocorreu.

A polícia diz ter dado todas as alternativas aos dois. Onde ela errou?

O que se percebeu foi que o Estado brasileiro acionou todo o seu aparato de segurança para, num tempo muito curto, de dois ou três dias, buscar e prender os dois cubanos. Ora, esses rituais são mais complexos e exigem mais tempo. Isso vai contra toda uma tradição brasileira e latino-americana de respeito à concessão de asilo político e de refúgio. Essa ação coloca em xeque todo um arcabouço histórico pelo qual o Brasil vem se pautando, de respeito ao direito internacional, principalmente a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951. O ministro Celso Amorim afirmou - eu li na imprensa - que os dois atletas não tinham pedido formalmente o refúgio. Isso me espantou tremendamente. O fato é que nesse episódio foi violado um costume do direito internacional, definido pelo termo francês ¿non-refoulement¿. É o princípio pelo qual um país jamais devolve a outro um cidadão que, ao retornar à sua pátria, certamente será vítima de perseguição e retaliações por parte das autoridades.

Aparentemente, antes que a PF concluísse os procedimentos um jato fretado pelo governo cubano já esperava os dois atletas no aeroporto. A pressa para resolver o caso constitui um erro importante?

Sim. Não é difícil perceber que o governo brasileiro mobilizou todo o seu aparato de segurança. Cabe lembrar que uma solução de longo prazo, que órgãos internacionais ligados à ONU costumam entender como a mais adequada, é o repatriamento voluntário ao país de origem. Isso torna a análise mais delicada, de fato. Até que ponto esse era de fato o desejo, até que ponto foram pressionados a isso, não temos como saber.

Existem várias alternativas nesses casos, como extradição, expulsão, repatriamento, deportação. Qual delas seria a saída adequada?

O que ocorreu, nesse caso, foi uma deportação, que é a devolução de um cidadão ao seu país devido ao não-cumprimento de algum requisito legal, como por exemplo o visto estar vencido. No caso, eles estavam sem passaporte, já que o chefe da delegação de Cuba no Pan 2007 mantinha o controle de todos eles, de todos os atletas. Além dessa saída havia várias outras. O instituto do asilo territorial e o do refúgio são diferentes. A concessão do asilo é um ato discricionário, o Estado tem uma margem de manobra maior para dá-lo ou não. Ele oferece uma proteção a alguém que já está sendo perseguido - não era o caso dos dois. O refúgio pode se configurar quando uma pessoa tem fundamentados temores de perseguição em seu país e está fora de suas fronteiras. Se o refúgio fosse solicitado, o pedido seria encaminhado ao Conselho Nacional de Refugiados (Conare). Também não se trataria de extradição, que é a entrega de um estrangeiro por causa de um delito que praticou em seu país. A expulsão também não ocorreu. Essa é adotada quando um estrangeiro é mandado para fora do país por causa de um ato ilícito que cometeu.

Se a deportação foi a saída correta, o que faltou?

No caso, o Itamaraty poderia ter sido acionado, visto tratar-se de uma situação em que uma negociação diplomática poderia resultar em algum benefício para os dois cubanos. Mas, tecnicamente, o Itamaraty ficar fora não configurou nenhuma impropriedade. Pode-se supor, isso sim, que pela estreita amizade entre Brasil e Cuba chegou-se a esse lavar de mãos por parte do Itamaraty.

Se o não-repatriamento para um país autoritário é uma norma, então o Brasil cometeu um erro, não?

O princípio do não-repatriamento automático não é um tratado, mas constitui uma das fontes principais do direito internacional. O fato é que o Brasil tem-se firmado como uma liderança regional na recepção de refugiados no Cone Sul. Por isso uma atitude como essa, emblemática, chamou a atenção. Houve, sim, uma politização, e o princípio de proteção internacional do indivíduo não foi considerado.