Título: A crise financeira e seus dias depois
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

Até aqui a crise financeira por que passam os mercados financeiros internacionais mostrou seu ponto mais forte na quinta-feira passada. No dia seguinte o Fed, o banco central americano, interveio reduzindo a taxa com que empresta a instituições financeiras.

Isso acalmou um pouco as coisas, com os mercados mostrando maior tranqüilidade até o momento em que ontem este artigo foi concluído. Trata-se, entretanto, de encrenca não resolvida. Sabe-se sua origem, um excesso de dinheiro disponível a juros baixo - a tal liquidez de que falam os economistas -, que se acumulou como resultado da forte expansão do comércio e da economia mundial desde 2003.

Essa dinheirama estimulou aplicações financeiras sem avaliações mais criteriosas de preços e de riscos, como a que ocorreu no mercado subprime ou de financiamentos imobiliários de segunda linha, nos EUA. Nele os financiamentos eram concedidos sem adequada comprovação de renda e a juros variáveis que acompanham a taxa básica americana, a qual passou a subir e a causar problemas aos devedores, ampliando sua inadimplência. Alguns deles, até com dificuldades de ler e entender as letrinhas miúdas dos contratos que assinavam. Acredito que outros, imigrantes, até para entendê-los, em inglês.

Esse mercado chegou às manchetes de todo o mundo, pois foi nele que a crise eclodiu, mas o excesso de liquidez e a busca por aplicações nem sempre criteriosas alcançaram outros ativos, como empreendimentos imobiliários em geral, moedas, papéis de dívidas privadas e governamentais, ações em geral, e blocos delas para controlar empresas. Esse movimento também alcançou vários países emergentes, entre eles o Brasil.

Como as instituições que financiaram os mutuários do subprime foram financiadas por outras, e estas têm seus investidores, a crise naquele segmento do mercado levou a uma reação em cadeia. Ademais, foi além das instituições direta ou indiretamente envolvidas, pois riscos que se materializaram num mercado provocaram um movimento geral de aversão a riscos potenciais em outros, e à busca de refúgio em ativos onde sabidamente são menores, como os títulos do Tesouro americano.

Assim, com a crise alargando suas dimensões, a liquidez deixou de fluir e/ou o fez para ativos de menor risco, onde na mesma linguagem está agora ¿empoçada¿ em papéis específicos e mercados isolados. Com a liquidez secando fora desses poços, vários bancos centrais, como nos EUA e na Europa, intervieram em sentido contrário, emprestando a instituições financeiras carentes de recursos, exigindo garantias adequadas. É um papel clássico dos bancos centrais, o de ¿emprestadores de última instância¿.

Isso, e em particular a redução de juros pelo Fed, acalmou um pouco os mercados, mas os desdobramentos da crise ainda ocorrem, e não se sabe por quanto tempo. Uma calmaria mais duradoura - até outra crise, pois o mercado financeiro é sujeito a elas - só virá quando as perdas forem conhecidas e contabilizadas e, assim, absorvidas pelos detentores de ¿micos¿ e seus financiadores, com os vários mercados reiniciando seu jogo com ativos de valor e risco reavaliados. O próprio tamanho da crise e dos seus danos ainda está por esclarecer, pois as informações ainda não são conhecidas e a escassez de crédito que se estendeu a vários mercados pode gerar mais inadimplentes.

Apesar do discurso oficial de que o Brasil está blindado contra crises, conseqüências já vieram e outras ainda virão. Em particular, o dólar subiu, reacendendo a perspectiva de uma inflação mais alta e de uma reação em contrário do Banco Central, aumentando os juros, com reflexos negativos sobre o desempenho da economia. Este não merece ser chamado de bom, mas pelo menos não é tão ruim como no passado recente. Alguns fundos de renda fixa e de papéis de prazo mais longo sofreram perdas no valor de seus papéis e de suas cotas, em face da expectativa de juros futuros mais altos. As maiores perdas foram no mercado de ações, mas quem está lá deve saber que perder faz parte do jogo desse mercado.

Inspira maior temor a possibilidade de um arrefecimento mais forte do desempenho da economia mundial, puxado por um maior esfriamento da atividade econômica nos EUA, com reflexo negativo sobre os preços de commodities e sobre as exportações em geral, que tanto contribuíram para a melhoria das contas externas do País. Mas, se houver, essa queda deve vir juntamente com uma desvalorização do real, o que aliviaria parte de seus efeitos internos, se a redução não for forte. Os preços de várias commodities já caíram, mas pode ser apenas um movimento transitório, causado pela retração de negócios que tipifica a conjuntura internacional.

Mesmo com inevitáveis perdas, mas ao mesmo tempo com a maior disciplina a que elas podem levar, a saída ideal para a crise seria uma que excluísse um retorno aos ilusórios ¿bons tempos¿ que nos últimos anos reinaram nos mercados financeiros internacionais. Ilusórios porque prenunciavam a crise ao mostrarem ganhos derivados de operações de alto risco mal avaliadas por instituições financeiras e seus investidores. Assim, poderemos chegar a um mundo financeiro e a uma economia melhores se as lições da crise forem aproveitadas para uma regulação mais rigorosa do gerenciamento de riscos, levando a um aperto de crédito saudável na medida em que for mais seletivo nas características das operações e dos devedores nelas envolvidos.

Está mal informado quem tiver certeza sobre o que ainda está por vir. Essa crise não tem apenas um ¿day after¿, ou um dia seguinte, mais muitos dias depois, ainda incontáveis e insondáveis.

* Economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda