Título: Dignidade, Já
Autor: Reale Júnior, Miguel
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

Comemora-se este mês o aniversário de 30 anos da Carta aos Brasileiros, ideada por alguns advogados como José Carlos Dias, Flávio Bierrenbach, José Gregori e Almino Afonso, que convidaram Goffredo da Silva Telles Júnior a ser o representante máximo da sociedade civil, ao qual incumbiria a elaboração de um manifesto em prol do retorno da democracia, a ser lido nas comemorações dos 150 anos de fundação dos cursos jurídicos, em meados de agosto de 1977, no pátio da sempre nova velha Academia do Largo de São Francisco.

Com seu estilo combatente, Goffredo da Silva Telles Júnior iniciava a Carta aos Brasileiros com uma declaração enfática e um compromisso de fé: ¿Na qualidade de herdeiros do patrimônio recebido de nossos maiores, ao ensejo do Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil, queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade. Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos direitos humanos, contra a opressão de todas as ditaduras.¿

Depois de prelecionar com clareza sobre a exigência de uma ordem jurídica legítima, a ser obtida por via de uma Constituição soberana fruto de um Poder Constituinte livremente eleito e representante fidedigno dos anseios de uma sociedade civil consciente de seus direitos, Goffredo finalizava proclamando: ¿A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só, o Estado de Direito, já.¿

Naquele momento, presidia eu a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), que se transformara em centro de debate da redemocratização, reunindo os próceres políticos da oposição e lideranças de diversos setores da sociedade civil para pensar o caminho de um Brasil livre. À AASP compareceram para debater um projeto de nação democrática os líderes do MDB, Paulo Brossard e Teotônio Villela, os intelectuais Carlos Guilherme Mota, Flávio Rangel, Gianfrancesco Guarnieri, Dalmo Dallari, Henry Sobel, Oliveiros Ferreira, Celso Lafer e René Dotti, entre outros.

Denunciava-se a falácia da proposta do regime militar de que a consecução do binômio ¿segurança nacional e desenvolvimento¿ teria o condão de transformar, quem sabe quando, uma ditadura em democracia. Goffredo, na Carta aos Brasileiros, enfatizava a falsidade da afirmação de que o Estado de Direito e a democracia são ¿a sobremesa do desenvolvimento econômico¿.

Para nós, sociedade civil, o Estado de Direito era um pressuposto inarredável, pois desenvolvimento devia ser um objetivo desde que no bojo do Estado de Direito. Propúnhamos o fim do regime de exceção, a convocação de uma Constituinte e discutíamos temas de reforma política asseguradora de estabilidade democrática e fidedignidade na representação política.

Foram os conselheiros da AASP os primeiros signatários da Carta aos Brasileiros, antes mesmo de sua leitura no pátio da Academia do Largo de São Francisco. Sem dúvida, foi um momento de entusiasmo, de crença e de firme expectativa na remodelação do País, a justificar que uma entidade como a AASP, dedicada primacialmente às vicissitudes da classe dos advogados no exercício profissional, se voltasse para a questão institucional. Todos nós largávamos o círculo dos nossos interesses particulares para nos dedicarmos ao interesse geral, convencidos de que a política podia ser exercida com dignidade em prol do bem comum.

O mesmo grupo de advogados que se reunira em volta de Goffredo no lançamento da Carta aos Brasileiros cerrou fileiras ao seu lado na Conferência Nacional da Ordem dos Advogados em maio de 1978, em Curitiba, ao se exigir democracia já, em oposição à proposta de redemocratização gradual como remédio a conta-gotas contra o autoritarismo. A tese do gradualismo foi derrotada. Novo combate se empreendeu em 1979 em favor da anistia.

Grande parte desses advogados se ligou em 1982 ao candidato ao governo de São Paulo Franco Montoro, que reuniu, na casa situada à Rua Madre Teodora, a sociedade civil para elaborar um programa de governo, formando-se ali uma escola de agentes políticos que muito contribuíram em propostas e, depois, em efetiva ação executiva.

Dias atrás houve, no oitavo aniversário de morte de Franco Montoro, uma tarde dedicada, no Memorial da América Latina, ao legado do grande político. Além da eficiência administrativa e da atenção aos problemas concretos, como alimentação e moradia, o grande legado de Montoro foi a identidade entre política e dignidade, presidida a ação política por uma grandeza de alma.

O desprendimento de Montoro ficou patente ao abrir mão de sua natural candidatura à Presidência da República, como governador de São Paulo, para garantir a vitória das forças de oposição em torno do nome de Tancredo Neves, mais viável no colégio eleitoral.

Na mesma linha de recordações, cabe mencionar a seriedade, a coragem e o devotamento com que Ulysses Guimarães e Mário Covas enfrentaram os desafios da política brasileira.

Hoje, todavia, estamos entregues ao deboche como marca da política, cujo slogan é ¿relaxa e goza¿; à pratica do mensalão como forma de relação entre governo e Congresso; ao despudor de constranger o Senado Federal que se preside; aos áulicos palacianos, cuja grosseria indica o desprezo à dor alheia para proteção do chefe; à pretensão de intangibilidade do presidente, a ponto de a corriola correr a dizer que as vaias no Maracanã eram ato ensaiado; à concessão de sinecuras e condecorações a companheiros partidários incompetentes; à ampla corrupção nas empresas estatais e nas autarquias.

Por tudo isso, e com a mesma ênfase com que há 30 anos se exigia Estado de Direito já, hoje se deve reclamar por dignidade na política, já.