Título: A fartura do Estado 'raquítico'
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

Um ¿hiperprecedente¿. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, tem razão. O trem da alegria que ameaça efetivar 260 mil trabalhadores não concursados nos espaços da administração pública federal arrastará outras levas para mamar nas tetas do Estado. Mais de 1 milhão de pessoas, segundo estimativas, terão os mesmos direitos. Ufa! Até que enfim, um representante do governo Lula se dá conta de que a efetivação de um contingente desse tamanho será o estouro da boiada no curral federal. O estrago, é claro, não ocorreria de imediato, mas na esteira das pensões e aposentadorias futuras, cuja conta já alcança 12% do PIB. Mas o Estado é ¿raquítico¿, avisa o novo presidente do Ipea, Márcio Pochmann. Agüenta muita gordura. Além disso, dinheiro brota como erva daninha nos cofres federais. Mesmo sem a CPMF, a bocarra da Receita, em relação ao primeiro semestre do ano passado, agarrou um naco de R$ 2,8 bilhões a mais. Como encaixar o temor do ministro do Planejamento no corpo caquético do Estado desenhado pelo economista da PUC de Campinas?

Vejamos. Pochmann aponta a necessidade de especialistas - engenheiros, médicos, paramédicos, professores - para melhorar a gestão da coisa pública. E se vale do número de funcionários públicos, apenas 8% do total de trabalhadores ocupados no País. Em 1980 esse índice era de 12%. Ora, radiografar a anatomia do Estado sob o prisma do número de empregados não parece certo. A questão é saber se o Estado tem sido eficiente. Os serviços públicos, ao que se sabe, estão deteriorados. Maior número de empregos efetivos não significa necessariamente maior produtividade. Bernardo, por sua vez, teme que futuros servidores não concursados e trabalhadores temporários no serviço público, ancorados na PEC 54, reivindiquem direitos e formem uma corrente sem-fim. Distingue-se, ainda, interesse político na medida. Esticar a folha de pagamento da União, hoje em torno de R$ 115 bilhões anuais, vai diminuir o colchão social e, conseqüentemente, o cobertor de Lula. Há uma corrente, porém, que enxerga além do horizonte. O PT e a CUT, por exemplo, desenvolvem um projeto de poder para o qual a extensão da malha de servidores fixos se torna fundamental. Por meio dela fortalecerão o sistema de pressão e articulação, vital para a manutenção do poder, e engordam o caixa.

A extravagância que a Câmara dos Deputados poderá cometer se insere na rota da paquidermia em que caminha o Estado. Contribuirá para destroçar princípios que banham a modernidade institucional, como racionalização de estruturas, absorção de processos tecnológicos, aperfeiçoamento de quadros, tempestividade da ação pública e melhoria geral dos serviços. Vale lembrar que atrás do primeiro contingente - os servidores da área federal - virão as massas provisórias de Estados e municípios. O fio do novelo será irremediavelmente puxado. E o custeio da máquina federal, hoje em torno de 20% do PIB, subirá ao topo da montanha. Pano de fundo: a dívida pública do País já chega a quase 50% do PIB. Enquanto sobrar dinheiro, a torneira continuará aberta. E ninguém deve ter a ilusão de contar com reforma tributária para aliviar a mordida do Leão.

A lubrificação da engrenagem estatal, nos termos defendidos pelo presidente do Ipea, pode até ser medida de bom senso. Ocorre, porém, que o óleo do presidencialismo imperial brasileiro, em vez de conservar, corrói a ferragem. Se o professor Pochmann defende o ingresso de especialistas, procure-os pela porta do concurso público. Mesmo assim, não se pode garantir que o compromisso com a eficácia será atendido. Os espaços públicos em todos os entes federativos, com raras exceções, passam por controle de grupos, partidos e corporações. A lubrificação da máquina seria mais eficaz sob o parlamentarismo, em que os corpos técnicos resistiriam às pressões do poder político.

Para agravar, o Brasil comporta-se como uma ilha de segurança no mar das tormentas. Nada parece afetar a bonomia das autoridades. As Bolsas mundiais desabam? O País não será afetado. É o que promete Lula. Seguir o exemplo de países que fizeram reformas administrativas e econômicas? O Brasil considera-se maior e melhor. A Irlanda, um dos países mais pobres da Europa Ocidental, diminuiu despesas em 33% em duas décadas e reduziu as vagas na administração pública. Passou a ser uma forte economia. A Nova Zelândia reduziu 26% dos gastos estatais em menos de dez anos. Implantou um Ato de Responsabilidade Fiscal que, ao contrário dos nossos trópicos, é cumprido à risca. No Canadá, o gasto público chegava a 52,8% do PIB na década de 90. O país fez uma reforma administrativa e passou a crescer. A Espanha flexibilizou as relações do trabalho. Reduziu as despesas, que chegavam a 47,6% do PIB. A Coréia do Sul gasta 2,3% do PIB com aposentados e no México essa conta é de apenas 1,6%. Por aqui, tudo vai bem. Só há motivos para comemoração. Pano de fundo: o volume de investimentos nos últimos anos representa, na média, cerca de 20% do PIB. Nas economias emergentes da Ásia, essa taxa é de 33%.

Srs. passageiros, se há um trem da alegria a mais correndo nos trilhos da ¿patriotada¿ parlamentar (uma das emendas à PEC 54 é de autoria do deputado Gonzaga Patriota, do PSB-PE), não se desesperem. Outros virão mais adiante. E esqueçam a idéia de enxugamento da administração federal, composta por 37 Ministérios, agências reguladoras (regulam o que e como?) e centenas de órgãos. Retomar a privatização? Os partidos de esquerda (de que esquerda?) não deixarão, pois a fartura do Estado lhes basta. Flexibilizar a legislação laboral, como fizeram países europeus? Aqui seria um pecado mortal. Eliminar o Imposto Sindical? Jamais. Estruturas poderosas querem ver os cofres cheios. Reformar a Previdência, acabar com privilégios, ampliar o tempo de contribuição e equalizar os regimes? Os políticos preferem empurrar o tema com a barriga, enquanto o governo diz amém. Se assim é, permaneçamos em berço esplêndido.