Título: A democracia nos divide
Autor: Souza, Paulo Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

A surpreendente continuidade imprimida pelo atual governo em relação ao período FHC nas mais importantes políticas nas áreas econômica e social tem levado alguns analistas a destacar uma suposta unidade de pensamento e ação entre os dois partidos protagonistas, o PSDB e o PT. As divergências e divisões no campo político seriam explicadas por questões pessoais e disputas por espaços de poder, não tendo enraizamento mais profundo na verdadeira Política. Na mesma linha, não poucos empresários sustentam a necessidade de uma aliança entre os dois partidos para governar o País no futuro. Essas visões e propostas passam ao largo de uma profunda divisão entre nós: a questão da democracia.

A democracia como sistema político, apesar de antiga, é frágil e precisa ser constantemente defendida e aprimorada. Apesar da antiguidade das experiências democráticas, as raízes do autoritarismo em suas várias manifestações são muito mais profundas na sociedade. Basta constatar que a humanidade viveu muito mais tempo sob a égide do autoritarismo do que sob regimes democráticos. O século 20, recentemente encerrado, assistiu à implantação de regimes políticos de caráter fortemente autoritário - à direita e à esquerda - baseados em supostos ¿fundamentos científicos¿, em contraposição ao voluntarismo e personalismo do passado. Todas essas experiências, fundadas em idéias formuladas no século anterior, sucumbiram por razões econômicas, sociais e políticas, que incluíram embates bélicos de grandes magnitudes. A democracia representativa sobreviveu e, sob muitos aspectos, se fortaleceu no mundo todo, em especial no Ocidente.

O mundo que emerge no século 21 vem incorporando os maiores avanços científicos e técnicos que a História registra. Os níveis de conhecimento e informação por parte da sociedade assumem proporções impensáveis no passado, o que proporciona condições de participação social e política sem precedentes de amplos segmentos da população. Neste contexto, o compromisso com a defesa e o aprimoramento das instituições democráticas, especialmente da democracia representativa, surge como a tarefa número um dos líderes políticos de nosso tempo. Esse compromisso inclui necessariamente o fortalecimento do Parlamento, o aprimoramento e a agilização do Poder Judiciário para assegurar a igualdade de todos perante a lei, o compromisso com a ética e a transparência na política, o fortalecimento dos partidos políticos e a incorporação de novas formas de participação e controle social.

Ao longo dos quatro últimos anos assistimos ao partido do presidente, incluindo alguns de seus ministros mais próximos, protagonizar o maior esquema de corrupção de quem tem notícia em nossa História, destruindo o já precário sistema partidário e jogando muita lama sobre a instituição maior da democracia, o Congresso Nacional. Como já destaquei em artigo publicado neste mesmo espaço há mais de dois anos, o problema não foi apenas a fraude no financiamento das campanhas políticas, mas especialmente o uso do dinheiro público para o financiamento do partido do governo, para o enriquecimento privado de alguns membros de sua nomenclatura e para a compra de apoios entre parlamentares de outros partidos.

A reação do presidente e de seu partido em face dessas denúncias foi a pior possível. Em vez de assumir com serenidade e firmeza a liderança política do País para apurar com rigor os fatos denunciados, punir os responsáveis e superar a crise provocada por seus companheiros e aliados, insistiu em buscar bodes expiatórios, criar conspirações mirabolantes e afirmar pateticamente ser o campeão nacional da ética pública. Seu partido, depois de alguns movimentos iniciais que davam esperanças de uma autêntica autocrítica e renovação, adotou um comportamento que se assemelha ao das máfias criminosas, acobertando evidências e proporcionando proteção econômica e política aos acusados.

Poderíamos lembrar ainda as iniciativas claramente autoritárias, frustradas pela sociedade, como a criação dos Conselhos Federal de Jornalismo e de Cultura. Isso tudo sem mencionar o enorme aparelhamento do Estado por parte do partido, contrariando os mais elementares princípios republicanos.

Nos segmentos políticos à esquerda, e em especial em amplos segmentos do PT, muitos ainda buscam a utilização da ¿democracia burguesa¿ como um meio para ¿construir uma sociedade socialista¿. Mesmo que poucos ainda proponham a ¿ditadura do proletariado¿ como uma etapa para a construção do socialismo, muitos defendem claramente uma sociedade em que os valores da liberdade estejam subordinados aos da igualdade, contrariando a equivalência consagrada desde a Revolução Francesa.

Toda generalização é burra. Obviamente, há democratas no PT, como há autoritários nos demais, incluindo o próprio PSDB. O que nos distingue são os compromissos partidários com o aprimoramento e o fortalecimento das instituições democráticas, claramente assumidos e praticados durante os governos nos quais fomos e temos sido protagonistas. Sem dúvida, entendimentos futuros entre os partidos são possíveis. Para isso, entretanto, é preciso que o presidente Lula e seu partido ofereçam provas cabais e materiais de maior apreço pelos valores democráticos do que tiveram nestes quatro anos e meio de exercício do poder em nosso país.

Paulo Renato Souza, deputado federal por São Paulo, foi

ministro da Educação no

governo Fernando Henrique Cardoso, reitor da Unicamp e secretário de Educação no governo Montoro. E-mail: dep.paulorenatosouza@camara.gov.br