Título: Bancos centrais sob fogo
Autor: Carneiro, Dionísio Dias
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/08/2007, Economia, p. B2

A reação histérica dos mercados financeiros à ata da última reunião do Comitê de Mercado Aberto do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) ilustra o fogo a que estarão sujeitas as autoridades monetárias nesse final de ciclo. Talvez seja o preço que os bancos centrais terão de pagar pelos momentos de glória vividos desde que os bons tempos começaram, no quarto trimestre de 2002. Antes da ata, dominava a visão de que o Fed reduziria a taxa básica de juros por temer que uma recessão aguda estivesse no forno. Por enquanto, o presidente do Fed, Ben Bernanke, tem insistido na diferença importante entre injetar liquidez no mercado de reservas bancárias, o que ele já demonstrou estar disposto a fazer, e estimular a demanda via afrouxamento da política monetária, o que os dados ainda não recomendam. Não há ortodoxia que justifique a indiferença diante da iminência de um sério choque recessivo de crédito, capaz de causar danos profundos ao consumo na economia americana e de agravar os desequilíbrios internacionais. Mas a prudência recomenda eliminar apenas os excessos de alavancagem dos últimos anos e estimular a transparência na avaliação dos riscos associados a investimentos que acenam com altas taxas de retorno. O realismo da racionalidade limitada, entretanto, recomenda que não se confie em precisão de neurocirurgia quando se tenta interromper um processo turbulento que costuma ser desorganizador de negócios, de expectativas e de investimentos. O que se espera de um banco central nessas horas? Que irrigue o sistema bancário, de modo a impedir que a segmentação financeira, típica das crises de confiança, cause danos ao sistema de pagamentos e à oferta de crédito para o giro dos negócios. Mas se espera também que sejam consideradas as peculiaridades conjunturais de cada país (leia-se as perspectivas de inflação e do nível de atividade), quando se inicia a correção. O Fed, o Banco Central Europeu e, na semana passada, o Banco da Inglaterra demonstraram disposição para oferecer liquidez geral ao sistema bancário pela janela de redesconto e até aceitando títulos originados por financiamentos imobiliários como lastro, o que mostra a preocupação de recompor diretamente o mercado para papéis contaminados, o que Willem Buiter denominou recentemente de 'função market-maker'. Nenhum deles, entretanto, sinalizou o simples afrouxamento da política monetária, como muitos analistas esperavam. A ação diminui o custo de recomposição de carteiras avariadas dos fundos e ajuda a suavizar o tombo do setor real no processo de desalavancagem. Tanto os mercados de renda fixa quanto os mercados de ações reagiram favoravelmente às perspectivas de maior facilidade para a transmissão da liquidez. Uma solução rápida para a crise é, entretanto, mais uma esperança do que uma projeção técnica educada e, de qualquer forma, não requer mudanças na trajetória das taxas de juros básicas. Isso porque é natural que os principais bancos emissores estejam preocupados com a inflação, que se acelera. Nessas horas de turbulência crescem as pressões a favor da chamada 'doutrina dos títulos lastreados' (real bills doctrine), que regeu a ação do Fed na década de 1920 e ajudou a construir a exuberância que levou ao crash de 1929. Segundo essa doutrina, os bancos centrais não provocam inflação se estiverem financiando operações 'produtivas', pois estas estão associadas ao aumento da oferta. Os que apostam na volta do crédito farto para estimular preços de ações e a continuidade do ritmo de crescimento do comércio internacional vão ter de esperar mais, pois as falácias dessa doutrina são bem conhecidas dos profissionais. O melhor que os bancos centrais podem fazer é evitar que as incertezas inflacionárias aumentem a imprevisibilidade das variáveis reais, pois esta tenderia a agravar a contração cíclica do investimento. Para isso, precisam usar corretamente os instrumentos de que dispõem para controlar movimentos potencialmente destrutivos da confiança e capazes de paralisar a oferta de crédito, sob o fogo dos empresários e o medo dos políticos. Bernanke, Trichet e Mervyn King têm demonstrado serenidade e profissionalismo nessa crise ao distinguirem entre as necessidades imediatas de liquidez do sistema financeiro e os objetivos permanentes de controlar a inflação e a volatilidade do crescimento econômico. O equilíbrio entre essas tarefas é mais difícil quando há forte pressão emocional, investidores com a sensibilidade à flor da pele e alto potencial de destruição de riqueza.

*Dionísio Dias Carneiro, economista, professor do Iapuc, é diretor do Iepe/CdG