Título: A chaga da exclusão
Autor: Di Franco, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2007, Espaço Aberto, p. A2

Em recente artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, anunciou o mapeamento das populações em situação de rua de 60 cidades com mais de 300 mil habitantes. Preocupa-se o ministro com pessoas ¿a quem não resta nada e que buscam em praças, ruas e avenidas as mais variadas formas de sobrevivência, dependendo da vontade alheia e, muitos, ainda convivendo com graves problemas de alcoolismo, sofrimento mental, violência¿. Segundo o ministro, o objetivo é formular, a partir do levantamento, políticas nacionalmente articuladas para esse público, construindo iniciativas que contribuam para a inclusão dessas pessoas.

Tenho sido crítico em relação aos desmandos e aos sucessivos casos de corrupção que se apalpam em muitos setores do governo Lula. Reconheço, no entanto, a competência e a integridade do ministro do Combate à Fome. Prefeito bem-sucedido em Belo Horizonte (1993-1996), Patrus Ananias conjuga capacidade de gestão com notável sensibilidade humana. Ele é, de fato, um dos grandes responsáveis pela popularidade do presidente Lula. Legiões de brasileiros vivem em situações de extrema pobreza. O tráfico de drogas, brutal e hediondo, tem aliciado mão-de-obra no mercado do desespero e da desesperança. As políticas sociais do governo, formuladas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, estão sendo, a curto prazo, um bálsamo na chaga da exclusão. A vida dos pobres melhorou. E isso é importante.

Governos, há décadas, viveram de costas para a gravíssima crise social. A elite brasileira não soube ou não quis assumir sua parcela de responsabilidade. Agora, o rosto da fome toca no nervo exposto da insensibilidade. Para os homens de bem, no entanto, a situação pode ser um vibrante apelo à solidariedade, fortemente embotada pela cultura do egoísmo.

Não é humano, por exemplo, queixar-se dos incômodos urbanos provocados pelas correntes migratórias. É preciso ter a coragem de reconhecer a injustiça que se esconde no triste nomadismo. O sertanejo nordestino, tão brasileiro quanto nós, não migra por prazer. Ele é expulso de sua terra pela fome, pela infame indústria da seca, pela incompetência governamental e pela corrupção que, há décadas, transforma verbas públicas em negócios privados.

É, também, uma vítima do desequilíbrio econômico que ainda perfila o mapa do desenvolvimento brasileiro. Um Sul rico e progressista, cercado por guetos de pobreza aviltante, é injusto e inviável. Trata-se de uma bomba-relógio. E já se ouvem as explosões no coração dos grandes centros urbanos. Imagens de crianças famintas são capazes de provocar matérias especiais e emoções momentâneas. Discute-se, com razão, a respeito dos desvios éticos da instrumentalização política da miséria. Poucos, no entanto, vão ao cerne do drama. Enquanto brasileiros passam fome, os representantes da burocracia, independentemente do seu colorido ideológico, teorizam sobre o flagelo da seca.

Mas não é necessário ir ao sertão para sentir a mordida da insensibilidade. As esquinas das nossas cidades testemunham, diariamente, um chocante desfile da exclusão. Como lembrou certa vez o cineasta Walter Salles, ¿o conceito de nadificação do outro¿ é o que melhor explica o apagão da sensibilidade. Valores cristãos como fraternidade, partilha, compaixão não são vendáveis nem controláveis pelas noções de eficiência ou de resultados imediatos. É necessário baixar as armas do utilitarismo aético e desumanizador e pensar nas pessoas concretas.

A preocupação social, felizmente, começa mobilizar muita gente. Multiplicam-se iniciativas sérias de promoção humana. Conheço de perto uma obra notável. Sob inspiração da prelazia do Opus Dei, foi fundado em 1985 o Centro Educacional e Assistencial de Pedreira (www.pedreira-centro.org.br). Nasceu de um ideal de diversos profissionais e estudantes, preocupados em organizar um trabalho social sério na zona sul de São Paulo. Após estudo da situação e das suas necessidades, verificou-se que, no Bairro de Pedreira, a 30 km do centro da capital, jovens de 10 a 18 anos se encontravam numa situação de grave risco social, expostos a drogas, marginalidade e criminalidade. Implementou-se, então, uma escola técnica para jovens carentes que dispusesse de tudo o que uma escola de ¿primeira linha¿ pode oferecer.

A Pedreira - como é carinhosamente conhecida - tem atualmente capacidade para 500 alunos e conta com aproximadamente 5 mil m2 de área construída, distribuídos num terreno de 23 mil m2. Oferece cursos básicos de Eletricidade Residencial e Industrial, Auxiliar de Informática e Informática Aplicada, e cursos técnicos de Administração, Telemática e Telecomunicações, com duração de um a dois anos.

Muitos dos alunos são, em suas famílias, a principal fonte de renda, o que constitui um impacto social relevante. Além disso, deixam a escola com a clara consciência da necessidade de estudar com afinco e dedicação. Com essa mentalidade, é comum que muitos dos alunos da Pedreira cheguem ao nível universitário, uma meta quase impensável no início de seus estudos, em razão das suas difíceis condições de vida. Mudar é possível.

Por isso, os esforços do ministro Patrus Ananias e de tantas pessoas engajadas no mutirão da inclusão merecem registro jornalístico. Não resgatarão, por óbvio, nossa imensa fatura social, mas sinalizam uma atitude importante: olhar a pobreza não com o distanciamento de uma pesquisa acadêmica, mas com a fisgada de quem se sabe parte do problema e, Deus queira, parte da solução.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia