Título: Verdades imaginárias, sofrimentos reais
Autor: Cardoso, Eliana
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/08/2007, Notas & Informações, p. A3

O ministro Tarso Genro deve explicações ao Senado. O Brasil negou à imprensa acesso a dois pugilistas cubanos que não queriam voltar a seu país. Prendeu os atletas e os repatriou para uma ditadura que viola o direito de ir e vir.

Em Cuba a ideologia constrói verdades imaginárias em nome das quais as cadeias ficam repletas de dissidentes. Não por algum ato que tenham cometido, mas pelo que seus algozes presumem que eles sejam. A essa tradição também pertencem os campos de concentração e a prisão de Guantánamo, que hoje abriga supostos terroristas.

É curioso que os campos de ¿reconcentración¿ tenham surgido pela primeira vez em Cuba. Em 1895, para acabar com revoltas campesinas, o poder espanhol retirava possíveis rebeldes de suas terras e os confinava em lugares onde não tinham acesso a abrigo ou apoio. Em 1900, o termo espanhol - traduzido para o inglês - passou a descrever o processo de isolamento dos bôeres na África do Sul. Daí, a palavra e o costume se difundiram. Primeiro, na África Ocidental, onde os alemães ¿concentraram¿ a tribo herero para trabalhos forçados. Depois, na União Soviética.

Soljenitsyn usou o arquipélago como metáfora para os campos de educação do ¿homem novo¿ pelo trabalho. Pois, até a morte de Stalin em 1953, os campos se espalhavam como ilhas no mar da sociedade soviética.

É possível pensar nas brigadas de exilados da Rússia czarista como um precedente das prisões do Gulag - termo que corresponde às iniciais das palavras russas que designam a administração central dos campos. Já em 1918 Lenin queria a prisão dos ¿elementos não confiáveis¿ em lugares afastados. E a partir de 1929 os campos ganharam nova importância, porque Stalin decidiu usar trabalho escravo para explorar recursos naturais e promover a industrialização.

O Gulag cresceu, chegando a conter milhares de campos de concentração. Com base nos arquivos de seus administradores, calcula-se que, de 1930 a 1953, entre 18 e 28 milhões de prisioneiros passaram por aqueles cativeiros. Volumosos eram os fluxos de pessoas que ali entravam e de lá saíam, porque morriam ou eram libertadas. Por isso, no começo de cada ano, o estoque de trabalhadores nos campos de concentração girava em torno de 2 milhões.

Interessei-me pelo tema em julho, enquanto viajava pela Estrada de Ferro Transiberiana. Até há pouco tempo não havia outra ligação entre Moscou e o extremo oriente russo, que, parcamente povoado, era terra de ninguém. Em 1932, a descoberta de ouro na região de Kolyma coincidiu com o auge dos excessos de Stalin. E, assim como, na memória popular, Auschwitz se tornou a marca registrada dos campos nazistas, Kolyma também virou símbolo do Gulag.

Kolyma fica ao norte de Vladivostok, onde peguei o trem depois de nove horas de vôo entre Moscou e o Mar do Japão. Levava Pedro, meu neto. Viajamos ao longo da fronteira entre Rússia e China e depois tomamos um desvio para visitar Ulan Bator, capital da Mongólia. Voltamos à Rússia. Seguimos por um tempo sem-fim pelas margens do Lago Baikal. Imenso. Belíssimo. E fomos parando ao longo do caminho. Em Irkutsk (a Paris da Sibéria, segundo Chekhov). Em Kazan, nas margens do Volga. E retornamos a Moscou depois de atravessar estepes, florestas e rios através de 10 mil quilômetros e oito fusos horários.

Os prisioneiros do regime comunista faziam o percurso inverso em vagões de gado. Viajavam de Moscou a Vladivostok, onde embarcavam em navios para Magadan, cidade onde a temperatura no inverno cai abaixo de 50 graus negativos. Conta-se que 3 mil prisioneiros chegaram mortos a seu destino, encapsulados no gelo, porque policiais tinham controlado uma revolta com jatos de água que se congelava ao cair sobre os amotinados.

Os bolcheviques, assim como os nazistas, buscaram legitimar seus atos pela escolha de inimigos do povo e pelo uso de retórica que os desumanizava. Transformados em demoníacos sabotadores do regime, os inimigos podiam ter seus empregos e direitos civis usurpados. Em seguida bastava prendê-los, despojá-los de suas roupas e submetê-los a interrogatórios e torturas.

Existem, entretanto, diferenças importantes entre o sistema nazista e o soviético. Em primeiro lugar, diz Anne Applebaum (autora de Gulag, a History), a definição do inimigo na União Soviética era mais nebulosa que a do judeu na Alemanha nazista. O judeu no campo de concentração sabia que não tinha chance de escapar da morte, ao contrário do russo exilado na Sibéria.

O objetivo dos campos na União Soviética era econômico, apesar de suas atrocidades e ineficiência. Em contraste, vários campos nazistas não eram locais de trabalho forçado, mas fábricas de morte (como os campos de exterminação de Belzec, Chelmno, Sobibor e Treblinka). Esse Holocausto não teve equivalente na União Soviética. Portanto, embora o Gulag e Auschwitz pertençam à mesma tradição intelectual e histórica, foram sistemas distintos.

Mesmo assim, causa espanto que a crítica ao regime stalinista não tenha sido mais severa. No tempo em que Stalin condenava milhares de inocentes, o dramaturgo Bertolt Brecht disse ao filósofo Sidney Hook: ¿Quanto mais inocentes forem os condenados, tanto mais merecem morrer.¿ Parece que as utopias seduzem os intelectuais. Talvez por isso o repúdio a Fidel seja tão fraco.

Mas verdades imaginárias e fantasias sobre um ¿homem novo¿ alimentam a arbitrariedade dos poderosos. Inversamente, o Tao-Te King ensina que ¿o homem correto atém-se ao real.¿ O sábio e o bom governante não vendem nem compram ideologias. Fogem do radicalismo, pois ¿um grande país deve ser governado como quem frita pequenos peixes¿. Fogo brando e nada de movimentos bruscos, pois qualquer tranco destroça o peixe pequeno.