Título: Poder pelo poder
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/08/2007, Economia, p. B2
A história da democracia no Brasil é bem curta. Na República Velha, o pacto dos governadores preservava o coronelismo e os currais eleitorais, enquanto se consolidava uma versão tupiniquim do dedazo mexicano. A Constituição de 1946 ampliou o número de eleitores, mas conservou muitas das velhas limitações e introduziu novas distorções. Não apenas boa parte da população adulta continuou privada do direito de votar, mas a eficácia de cada voto podia variar consideravelmente. Só com a atual Constituição o colégio eleitoral foi efetivamente universalizado, embora ainda com distorções regionais profundas. O voto de um eleitor de Roraima continua valendo 13 vezes o voto de um eleitor paulista, na eleição de deputados. Mais de 110 vezes na eleição de senadores.
A digestão da efetiva universalização do voto não tem sido fácil. Depois da surpreendente vitória de Fernando Collor, em 1989, as eleições presidenciais no Brasil pareciam estar convergindo para embates entre partidos políticos razoavelmente convencionais. Com sorte, parecia não ser indevidamente otimista supor que as eleições algum dia seriam disputadas com base na comparação de programas de governo minimamente definidos, com a gradual perda de espaço do fisiologismo. O Partido dos Trabalhadores parecia ter conteúdo ideológico, com programa contrastante em relação aos programas dos partidos da coalizão que havia apoiado o governo Fernando Henrique Cardoso. Seu surgimento era aclamado como o mais notável fato novo ocorrido na vida política recente do País.
Nas eleições de 2002 e durante o primeiro quadriênio do governo de Lula, tornou-se claro que o diagnóstico convencional estava irremediavelmente ultrapassado. Obrigado pelos fatos a tornar-se realista, o novo governo foi forçado a manter na sua agenda a prioridade absoluta do controle da inflação. Uma feliz conjunção de eventos tornou possível a adoção sustentada de políticas macroeconômicas prudentes, a despeito das bravatas do passado. Além disso, o governo tratou de ampliar programas de redistribuição de renda em benefício das camadas mais pobres da população, herdados do governo anterior. No mais, mostrou singular inépcia em relação a quase todas as políticas setoriais, enquanto batia o bumbo com uma política externa grandiloqüente bastante ambiciosa e muito ineficaz.
O presidente foi se dando conta de que a combinação de inflação baixa com programas sociais, com a economia ajudada pela conjuntura econômica mundial favorável, criava condições ideais para a consolidação de sua popularidade em níveis extremamente altos. O comprometimento do Partido dos Trabalhadores com contumazes práticas corruptas contribuiu para enfraquecer o elo entre o presidente e o partido e para alimentar a vertente personalista do programa presidencial. Nem mesmo nos momentos de maior sucesso do populismo na história política brasileira, com a eleição de Jânio Quadros em 1960, foi mais eficaz o elo entre o líder político, agora homem do povo, e as massas. É a resiliência deste nirvana com marcas populistas que vem permitindo que a popularidade presidencial se mantenha incólume a despeito da inépcia aérea, dos revezes da diplomacia, da lamentável crise política no Senado e de maior percepção de potenciais crises afetando a oferta de serviços essenciais, inclusive com a recorrência de uma grave crise energética. O espaço aberto pela 'blindagem' da imagem presidencial, em vez de ser utilizado para definir e implementar políticas públicas que gerem resultados positivos e passíveis de legítima exploração política, tem sido usado para o progressivo relaxamento da atitude prudente no terreno macroeconômico, com o governo revelando de forma cada vez mais clara a sua completa incapacidade de controlar gastos de forma sistemática.
Por mais resistente ao desgaste que seja a popularidade presidencial, é difícil imaginar que possa resistir indefinidamente à exposição diária dos tropeços políticos e gerenciais da seu governo. Visões conspiratórias e denúncias de miragens de golpe têm sido ineficazes para servir de cortina de fumaça e esconder os desatinos na gestão da coisa pública. Na prática, o programa estratégico do governo parece esgotar-se no objetivo de assegurar o poder pelo poder, sem qualquer preocupação de viabilizar decisões que possam resolver, ou até mesmo minorar, os incontáveis problemas que o País enfrenta.
Além de seus defeitos intrínsecos, a estratégia política baseada na blindagem da popularidade do líder padece do problema crucial de não poder voltar a ser repetida, dadas as limitações constitucionais. Não há, entre os quadros políticos da coalizão governamental, nome que possa pretender a sucessão de Lula em seu papel de líder carismático, cuja popularidade permanece incólume a despeito da má qualidade de seu governo. Se o País contasse hoje com partidos de oposição minimamente eficazes, a sua ação estaria centrada na definição de agenda que privilegiasse nova geração de reformas definidas com base tanto nos graves erros do atual governo quanto nas inúmeras inapetências e omissões da atual posição quando foi governo durante oito anos.