Título: Medo de decidir paralisa o Estado
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/09/2007, Economia, p. B14
O setor público está paralisado pelo medo de tomar decisões, e isso é um sério problema de médio prazo para um País que necessita ampliar e melhorar a sua infra-estrutura. Para piorar a situação, parte do governo e da sociedade resiste à privatização, que seria uma forma de desfazer os nós que paralisam os investimentos em estradas, portos, energia, etc.
O diagnóstico é do economista Marcos Lisboa, 43 anos, que hoje é diretor executivo do Unibanco, responsável pelas áreas de risco e controle interno (¿compliance¿). Lisboa foi um dos principais formuladores da política econômica do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, como secretário de Política Econômica até abril de 2005. Ele ficou conhecido por tocar a chamada ¿agenda microeconômica¿, que está na raiz da expansão do crédito e do setor imobiliário nos últimos anos.
Em entrevista exclusiva ao Estado, Lisboa, que também foi presidente do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), criticou a ¿criminalização das decisões técnicas¿. Ele se refere à avalanche de processos contra funcionários públicos, por um Ministério Público e um Poder Judiciário que, em temas como meio ambiente (mas não só), parecem querer assumir o papel do Executivo de tomar decisões. Abaixo, trechos da entrevista.
Como o sr. vê o atual momento da economia global?
Acho que vivemos uma conjuntura difícil num momento de médio prazo muito bom da economia mundial. Estamos num ciclo de expansão provavelmente sem precedentes, tanto pela duração quanto pela quantidade de países envolvidos. Há uma seqüência de choques de produtividade em comunicações, informática, produção agrícola. Estamos colhendo os frutos de muitos anos de reformas institucionais nos países desenvolvidos e periféricos.
Que reformas são essas?
Vários países fizeram profundas reformas institucionais, incluindo a lei de falência, sistemas de crédito, a legislação trabalhista, agências reguladoras, previdência, entre vários outros temas. E, de outro lado, do ponto de vista macroeconômico, convergiu-se para equilíbrios fiscais, regimes de meta de inflação. Hoje nós achamos o Chávez uma coisa meio estapafúrdia, meio folclórica, meio Odorico Paraguassu, mas ele não estaria fora de esquadro nos anos 80, quando o Mitterrand nacionalizava bancos e seguradoras. O Kirchner parece hoje uma figura meio heterodoxa, mas nos anos 80 ele seria considerado a Margaret Thatcher dos pampas. É verdade que tem um pouquinho de congelamento de preços aqui e ali, mas há um equilíbrio fiscal jamais visto na Argentina. Eu não estou, obviamente, defendendo as políticas econômicas do Chávez e do Kirchner, que acho ruins e equivocadas. Usei esses exemplos para mostrar como houve uma convergência para melhor na política econômica, e a percepção do que é heterodoxo ficou muito mais rígida.
A turbulência recente não é um sinal de que a boa fase global pode estar acabando?
Quando falamos de uma desaceleração na economia americana hoje, não estamos falando de uma crise como a de 1929, nem mesmo de uma como a dos anos 70. Os mais pessimistas acham que podemos ter uma leve recessão, como a de 1991, dois ou três trimestres com a economia americana andando de lado.
Como o sr. vê o Brasil neste contexto?
O País está mais bem preparado para enfrentar um cenário global mais adverso, mas os últimos dados de inflação acenderam uma luz amarela. A economia brasileira está crescendo a uma taxa impressionante, o que é saudável, mas essa subida da inflação é um desafio no curto prazo. A política monetária talvez tenha de mudar de direção, e o governo e a sociedade vão ter de lidar com isso. O Banco Central fica muito exposto nesses momentos.
E a médio e longo prazos, como o sr. vê o Brasil?
Se olharmos o Brasil de 15 anos atrás e hoje, o País deu um imenso salto, e transformou-se em uma economia muito mais forte, muito mais saudável. Conseguimos avançar em reformas institucionais que vão do crédito às agências reguladoras, à política social que agora está contribuindo para reduzir a desigualdade e a pobreza, à condução da política macroeconômica e fiscal. Esse movimento da economia brasileira guarda semelhança com o que ocorreu em vários países. Só que a nossa distância em relação ao centro talvez tenha aumentado, na medida em que outros países fizeram mais do que a gente em menos tempo. A gente gastou mais tempo para fazer, demorou mais para começar, e fez muito à meia-boca. Nós temos toda uma agenda de reformas para garantir uma trajetória de queda da carga tributária que não entrou em ação, o que dificulta o crescimento de longo prazo. De outro lado, a proposta de reforma tributária do governo é muito boa.
Qual a sua análise da Previdência?
Essa discussão sobre se tem déficit ou não é surrealista, é quase picaretagem intelectual. O problema é o seguinte: o gasto com Previdência aumentou muito nos últimos dez anos no Brasil e vai aumentar mais ainda, por duas razões. Primeiro, porque vários idosos que não tinham acesso a recursos públicos, chame-se de previdência ou assistência, passaram a ter. Nós expandimos significativamente a cobertura, e eu acho muito bom que o País dê condições de vida mínimas aos idosos. Em segundo lugar, há uma questão geral, do mundo: as pessoas viviam 60 anos, e agora estão vivendo 80. No Brasil, a nossa expectativa de vida não está em 80, mas nas novas gerações já está. E, em várias partes do mundo, a idade da aposentadoria foi aumentada, de 55, 60, para até 70, às vezes mais. No Brasil, então, como se aposenta muito cedo, e as pessoas vivem muito, tem de aumentar a carga tributária para cobrir. Vamos acabar pegando a CPMF inteirinha e dando para a Previdência, e daqui a dez anos vamos criar uma CPMF 2. É isso, ou então fazer o que o resto do mundo faz, que é aumentar a idade média da aposentadoria.
Como o sr. vê a questão da infra-estrutura no Brasil?
Eu acho que talvez o nosso mal maior é que não conseguimos consolidar e aperfeiçoar o marco regulatório no País. Desde o governo FHC há um grande debate sobre o modelo de agências, e esse debate se acirrou na mudança de governo. Acho que parte do governo e parte do Judiciário ficou sensibilizada pela idéia de que talvez as empresas tivessem lucros extraordinários. E houve ações muito duras em relação a alguns setores, como no caso de seguro saúde, energia elétrica e telefonia, nas quais vários juízes deram liminares contra reajustes previstos. Eu acho que, quatro anos depois, fica mais claro que não eram corretas as teses centrais dos críticos. O investimento diminuiu muito em áreas vitais, nos últimos anos, em boa parte pela insegurança das empresas sobre a solidez dos contratos. Não tivemos, por exemplo, os investimentos que queríamos no setor elétrico e em diversas outras áreas de infra-estrutura. Hoje, as grandes seguradoras não oferecem mais seguro saúde individual, só oferecem para empresas.
Que outros fatores impedem os investimentos em infra-estrutura?
Nós temos questões institucionais muito complicadas. Pega o meio ambiente, por exemplo. Se um técnico do Ibama autoriza uma obra qualquer, e o procurador do Ministério Público discorda, ele pode processar o técnico do Ibama na pessoa física, criminalmente. Você criminaliza uma decisão técnica. Não é nenhum indício de má-fé, é discordância. Quer dizer, com uma espada dessas em cima da cabeça, quem é que vai autorizar qualquer coisa? Isso é um custo para a sociedade. O que você tem hoje é uma incapacidade muito grande em analisar os casos, em tomar decisão. Há uma grande paralisia. Esse problema não ocorre apenas no meio ambiente, e torna cada vez menos eficaz a gestão do setor público.
Quais as conseqüências dessa paralisia?
Há ainda uma resistência de parte do governo e de parte da sociedade em privatizar setores que na imensa maioria dos países são eficientemente geridos pelos setor privado. Então as coisas não andam, e a conseqüência é que o custo Brasil está subindo. Está cada vez mais caro entregar soja no porto, construir uma fábrica, ter acesso a energia.
O sr. é favorável ao Bolsa-Família?
O Bolsa-Família teve um impacto significativo sobre a desigualdade. Agora, tem de ter cuidado, porque o programa pode ficar muito caro ou se tornar ineficaz, e os recursos sociais são importantes para a saúde, para a educação. Havia a idéia no começo de que o programa deveria se concentrar em regiões muito pobres e muito homogêneas. Dessa forma, mesmo que ocorram transferências equivocadas, o erro é pequeno, porque quase todo mundo que vai receber é pobre mesmo. Nas grandes regiões urbanas, mais heterogêneas, os mecanismos de transferência podem ficar sujeitos a tráfico de influência, uso eleitoral, corrupção. Além disso, como qualquer política social, ou tratamento médico, o Bolsa-Família tem efeitos colaterais, e pode afetar o mercado de trabalho e gerar incentivos ao aumento da taxa de fertilidade nas famílias. Eu vejo com preocupação o fato de o Bolsa-Família estar crescendo muito, de forma talvez indiscriminada.Talvez seja a hora de, dado o programa que existe, estudar que políticas adicionais podemos fazer para de fato ajudar essas famílias, ou os filhos dessas famílias, a sair da pobreza.
Uma reforma que parece nem ter começado é a trabalhista.
De fato, essa a gente não fez. O problema no Brasil é que o debate é muito preconceituoso. Se você não gosta do diagnóstico, descarta o médico. Se eu falo que acho que a legislação trabalhista hoje piora o mercado de trabalho, reduz o acesso a emprego, se digo que ela aumenta muito o custo da demissão e, portanto, ela gera um custo na admissão e desestimula a expansão do emprego, se eu acho que ela piora a vida do trabalhador, e listo as razões, as pessoas falam que é porque eu sou contra o trabalhador e a favor da empresa. Desqualifica-se o argumento porque não se gosta da conclusão.
Como deveria ser a discussão?
Eu acho que devemos discutir a política pública com o mesmo cuidado que discutimos novos medicamentos: testes, grupos de controle, análise estatística, acompanhamento ao longo do tempo dos resultados. Isso porque mesmo a melhor conjectura pode ter efeitos colaterais inesperados. Quando eu era garoto, havia essa figura do motorista de táxi que tinha sempre uma tese, entre curiosa e estapafúrdia, para resolver algum grande problema, do conflito árabe-israelense à fome no mundo. Os intelectuais brasileiros têm um pouco essa síndrome do motorista de táxi. São construídas grandes teses com o objetivo de argumentar alguma complexa teia de causalidade, seguida de prescrições genéricas de política pública, que mal ficam de pé. O mais curioso nessas abordagens, que lembram os argumentos esotéricos, é a rejeição de testes usuais da abordagem científica e do uso cuidadoso dos dados. Acho que o debate esquerda-direita no Brasil desqualificou a importância da técnica na gestão pública. Tudo virou política, tudo virou interesse.